Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Qual é o papel da imprensa no caso da manipulação dos resultados dos jogos de futebol?

(Foto: Rafael Ribeiro / CBF)

Polícia é polícia, bandido é bandido”. Lembrei-me dessa frase dita pelo famoso assaltante de bancos Lúcio Flávio (1944-1975) logo que estourou nas manchetes dos jornais a notícia da descoberta, pela Operação Penalidade Máxima, do Ministério Público de Goiás (MP-GO) em parceria com a Polícia Federal (PF), de uma quadrilha que subornava jogadores de futebol para manipular os resultados das partidas. Na sexta-feira (12/05), o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, mandou a PF ampliar a investigação para todo o território nacional, enquanto a Câmara dos Deputados iniciava as articulações para a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para tratar do caso. Isso significa que vem chumbo grosso por aí e que o assunto ficará por muito e muito tempo nas manchetes. Em situações como essa é sempre recomendável que exista uma fronteira bem definida sobre quem é quem no rolo. Daí porque me lembrei da frase do Lúcio Flávio, que através dos tempos tem sido usada por nós repórteres nos nossos textos para definir quem são os personagens envolvidos nos escândalos. A história do bandido é contada no filme Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1976), além de livros, documentários e pesquisas. É uma boa leitura para os jovens repórteres que fazem o noticiário diário nas redações.

Vamos a nossa conversa. O cenário dessa confusão ainda tem muitos pontos desconhecidos que serão desvendados pela investigação policial. O que sabemos é que os chefes da quadrilha, Bruno Lopez, o BL, e seu comparsa Thiago Chambó estão presos e que o bando era organizado em quatro setores: intermediários (arregimentavam jogadores para suborná-los), apostadores (que apostavam altas somas nos jogos comprados), administrativo (orientava o fluxo das ações) e financiadores da operação de suborno. Toda a história, com nomes de jogadores subornados, jogos e times está nos noticiários – há um vasto material disponível na internet. Não vou me alongar mais sobre esse ângulo. Vou falar sobre o papel dos jornalistas nesse episódio. Aprendi uma coisa nas quatro décadas que trabalhei em redação como repórter investigativo, que é o seguinte: é conversa para boi dormir, como diz o dito popular, a história de que exista o jornalismo esportivo, o de dados, o de opinião, o político, o científico, o investigativo, o econômico, o de turismo e outros. Tudo é jornalismo, e o que acontece com um colega respinga em todo mundo. Vou explicar o motivo pelo qual fiz tal afirmação. Nos últimos cinco anos, os sites de apostas investiram R$ 3 bilhões no patrocínio de futebol (clubes, competições e transmissão pelas emissoras de rádio e TV). Não existe um número oficial, e as estimativas são de que as apostas esportivas no Brasil movimentam anualmente de R$ 10 bilhões a R$ 100 bilhões. Esses dados são de uma reportagem publicada no Estadão chamada Como os sites de apostas se tornaram o maior financiador do futebol brasileiro, escrita pelo repórter Ricardo Magatti (14/05). Parte desse dinheiro é usado para patrocinar sites de jornalistas com foco na cobertura esportiva.

Pela investigação policial, as casas de apostas (sites) são vítimas nessa história. E o maior prejuízo delas não é a manipulação dos resultados. Mas o dano que causou para a imagem do sistema de apostas a ação dessa quadrilha que manipulava os resultados. Nesse setor, a confiança é tudo. E ela foi abalada pela ação dos quadrilheiros. Isso significa que o volume de apostas deve cair até que a poeira se assente. Para diminuir o prejuízo, as casas de apostas adotaram, logo após a publicação de uma reportagem sobre a manipulação dos jogos, a estratégia de colocar no ar anúncios publicitários reforçando a sua marca. Também estão usando jornalistas que têm grife na cobertura esportiva para divulgar em seus canais e sites nas redes sociais relatos que ajudem a diminuir o impacto da ação dessas quadrilhas perante a opinião pública. Essa estratégia tem como consequência fazer parecer que a imprensa está tratando o problema de maneira superficial. Portanto, não é nada sério. Não é verdade. A imprensa nacional está publicando um vasto e variado material sobre a ação dessa quadrilha. Olhe, é do jogo as casas de apostas publicarem anúncios tentando reparar os danos à imagem do sistema de apostas esportivas causado por esse caso, desde que feito dentro da lei. O que nós temos que refletir é sobre o fato de jornalistas estarem misturando jornalismo com publicidade nos seus sites e canais na internet. São muito bem pagos para fazerem isso, tem gente ganhando até R$ 30 mil mensais. Dependendo do rumo que essa investigação policial vai tomar, isso pode se tornar um problema que respingará em todos, porque o leitor está sendo enganado. Não é por outro motivo que em jogos do Campeonato Brasileiro tem se ouvido entre os torcedores gritos de “olha a federal” (referindo-se à ação da PF no caso da Penalidade Máxima) quando um jogador leva um cartão, por exemplo. Não citei o nome das casas de aposta e dos jornalistas que estão misturando jornalismo e publicidade porque são muitos e conhecidos.

O fato é o seguinte: existe uma regra básica no exercício da nossa profissão. Jornalismo é jornalismo, publicidade é publicidade. As duas coisas não se misturam. E sempre isso acontece dá rolo. Já vi acontecer. Em 1992, fiz uma reportagem investigativa sobre o jogo do bicho no Rio Grande do Sul. Gastei meio ano fazendo a apuração das informações. Existiam poucos e mal apurados inquéritos policiais sobre a ação dos bicheiros. Precisei sair batendo de porta em porta para descobrir como as coisas funcionavam. Nas redações havia jornalistas que vendiam, em suas matérias, a ideia de que os bicheiros eram os únicos caras honestos no Brasil, porque pagavam fielmente as apostas aos ganhadores. Não era verdade. Para começo de conversa, as lotéricas que sorteavam os números do bicho eram de propriedade dos bicheiros, que faziam os sorteios em locais clandestinos e depois divulgavam o resultado em anúncios publicitários na imprensa. Mais ainda: eram os principais corruptores de policiais (civis e militares) e financiavam campanhas eleitorais. O jogo do bicho foi o pioneiro do crime organizado no Brasil. As casas de aposta são uma operação mundial e têm tecnologia para se defender das quadrilhas que tentam manipular os resultados dos jogos. Os seus CEOs sabem lidar com esses problemas. O uso de jornalistas para vender o seu peixe faz parte dessa tecnologia. O governo federal pretende legalizar e organizar as casas de apostas. Um passo importante para todos.

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.