Vinte anos sem obrigatoriedade do diploma para ser jornalista revelam que a decisão de a revogar não teve qualquer impacto no direito fundamental do cidadão de expressar seu pensamento.
17 de junho de 2009. No plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) se formou, por oito votos a um, o seguinte entendimento:
(1) A prática do jornalismo é o próprio exercício do direito fundamental de liberdade de expressão;
(2) Assim, ao permitir o exercício do jornalismo exclusivamente aos que possuíam formação superior em jornalismo, a ditadura civil-militar no poder em 1969 lhes assegurou com exclusividade o direito à expressão do pensamento.
(3) Os demais cidadãos brasileiros [inclusive os governantes, ministros do Supremo e donos de empresas de comunicação] ficaram impedidos, a partir de então, de expressar a sua opinião.
Mas o Supremo daria um basta nisso, naquele mesmo dia. Por oito votos a um, aprovou o fim da exigência de diploma de curso superior de jornalismo para ser jornalista. Para esses oito ministros, não havia dúvida de que, a partir dessa decisão, todos os cidadãos teriam (re)assegurado, no interior das organizações de comunicação e fora delas, o pleno exercício de expressão do pensamento, impedido durante os 40 anos anteriores, segundo essa interpretação.
Como decorrência desse raciocínio, seria forçoso entender que os jornalistas teriam ao menos mais dois grandes privilégios: (1) seriam religiosamente remunerados para expressar, com exclusividade, o seu pensamento, com direito também a vale-transporte, 13º salário, férias, FGTS e outros benefícios, inclusive seguro desemprego, e (2) sendo a atividade de expressão do pensamento livre, os jornalistas portadores de diploma de curso superior em jornalismo poderiam, e sempre puderam, criticar aberta e cotidianamente aqueles que lhes pagavam até então os seus salários e mantinham abertos os espaços a esse exercício de cidadania.
Só que não!
Nem a interpretação dos fatos, nem a decisão tomada tinham a menor chance de estarem corretas. A esperança é que os 14 anos transcorridos da decisão definitiva no STF, que se completam em 17 de junho de 2023, ou 20 anos se somados os períodos em que a obrigatoriedade do diploma esteve suspensa por decisão liminar e monocrática da juíza federal Carla Ríster (no TRF3) ou do ministro Gilmar Mendes (no STF), sirvam de lição e sejam levados em consideração pelos deputados federais.
Isso porque a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e as entidades que a apoiam, como a Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo (Abej) e a Associação Brasileira de Pesquisadores de Jornalismo (SBPJor), tentam convencer a Câmara Federal da urgência e da necessidade de aprovação da chamada PEC do Diploma [1]. Revisitar essa história e seus principais argumentos pode ajudar.
Assegurar plena liberdade de expressão a todos os cidadãos: a grande fake news do julgamento do diploma no STF
Esse foi o principal eixo que norteou a ação movida no início dos anos 2000 pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo, depois de histórica mobilização dos grandes meios de comunicação comerciais de todo o País, defendida pela Procuradoria Regional da República da 3ª Região e por alguns juízes do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), com destaque para a então juíza-substituta Carla Rister, do ministro Gilmar Mendes, relator da ação no STF, para quem não restava dúvidas de que o exercício do jornalismo é, em si mesmo, o exercício da liberdade de expressão e de que a exigência do diploma fere, adicionalmente, o direito de exercício da profissão aos demais cidadãos, e de oito colegas que o acompanharam.
Mas, como este autor já alertava à época em outros textos, inclusive neste Observatório da Imprensa, promoveu-se, por ocasião da decisão do STF em 2009, enorme “embaralhamento jurídico-conceitual”, fazendo com que o jornalismo fosse “julgado pelo que não é, transferindo o poder de regulação do Estado (sociedade) às empresas do setor”. E, claro, seria uma decisão completamente inócua no que dizia pretender: assegurar pleno direito de expressão aos cidadãos brasileiros.
Do ponto de vista histórico temos hoje um dado adicional: o tempo transcorreu e permite verificar se a decisão foi eficaz ou não. A resposta, já prevista na época, é não. Nem a exigência do diploma para o exercício profissional do jornalismo nem a sua eliminação tiveram qualquer impacto no potencial de manifestação do pensamento, ou do exercício de liberdade de expressão, por parte do cidadão. Nem poderiam!
Não se tem notícia de que, durante a vigência dessa obrigação, qualquer cidadão tenha sido impedido de manifestar a sua opinião. Não por causa da exigência de qualificação para ser jornalista. Da mesma forma, não há nenhum registro que aponte que agora, sem a vigência do diploma, os cidadãos brasileiros passaram a ter mais oportunidade de se expressar. Não por causa da eliminação desse requisito.
Ocorre que a premissa central que fundamentou toda a decisão estava errada. Por pelo menos quatro razões – dever ético, eficácia técnica, legitimação social e interesse do empregador –, o jornalista não manifesta sua opinião nas notícias e reportagens que escreve. Portanto, a exigência do diploma não lhe garante a exclusividade no direito à manifestação do pensamento, pela mídia ou por qualquer outro meio, usada como justificativa para tornar sem efeito tal requisito.
Na verdade, o jornalista jamais seria pago para isso, a não ser para as raras funções de articulista, comentarista ou algo semelhante, o que sequer se caracteriza como livre expressão do pensamento, mas jornalismo interpretativo. Por um lado, as organizações jornalísticas são indústria de um produto (a informação), dotado de um valor de troca (venda/lucro) que, como toda mercadoria, tem como contrapartida e só se realiza pelo seu valor de uso individual e coletivo. O jornalista é pago porque seu produto é fruto de um trabalho.
Portanto, eliminar a necessidade de formação, qualquer que fosse, não permitiria, como a história revelou de forma estonteante, o acesso dos demais cidadãos a esses espaços para manifestarem suas subjetivas posições individuais.
A verdade sobre o que faz um jornalista e para o que é contratado poderiam ter sido obtidas pelo STF mediante audiências públicas com a comunidade jornalística (profissionais, professores, pesquisadores, proprietários) ou, de forma mais simples e direta, examinando detidamente o instrumento-base em questão: o Decreto-Lei 972-1969, uma vez que foi ele quem instituiu a obrigação de formação superior em jornalismo para o exercício dessa atividade.
No alto da Lei se lê que a atividade de jornalista será livre em todo o território nacional aos que satisfizerem as condições nela estipuladas. E, logo de início, o conceito de jornalista que se sobressai é o de “trabalho”, “habitual e remunerado”, de produção de informação, que, sabemos, a sociedade só aceita se for verdadeira, plural e de interesse público. E o diploma, exigido para obter o registro no órgão competente do Ministério do Trabalho estava previsto no Inciso V do Art. 4º, para as funções (trabalho) identificadas nas alíneas a a g do Art. 6º, a saber: redator, noticiarista, repórter e outras tipicamente jornalísticas. Não se tem notícia de que, para expressar a própria opinião, o cidadão precise exercer alguma dessas funções.
Permanecendo qualquer dúvida, poderiam os membros do MP, do TRF3 [2] e do STF ter lido atentamente a Constituição Federal no que diz respeito às liberdades de expressão, de trabalho e de imprensa. A Carta Magna distingue claramente o direito, fundamental, de expressão da opinião, de qualquer trabalho, mesmo aqueles que envolvem a habilidade de comunicação. A primeira é assegurada no inciso IV do Art. 5º e é exercida diretamente pelo cidadão, como direito básico, natural, espontâneo, e a liberdade para trabalhar é garantida no Inciso XIII, para todos os cidadãos, de todas as profissões, “atendidas as qualificações profissionais que a lei exigir”. No caso da profissão do jornalista, há uma lei e ela exigia formação superior específica em jornalismo.
Na Carta Magna, a liberdade típica do gozo de cidadania (expressar-se), prevista no Art. 5º, dentro do Capítulo dois Direitos e Garantias Fundamentais, também se distingue nitidamente da “liberdade de informação jornalística”, simplificada como liberdade de imprensa no linguajar popular e assegurada pelo § 1º do Art. 220, no Capítulo da Comunicação Social. Ao contrário da primeira, natural, livre e assistemática, a segunda é exercida pelos jornalistas na forma de trabalho habitual e remunerado, como um mandato social (e constitucional) que visa garantir o direito do cidadão à informação, como um direito-meio, segundo o professor e pesquisador Victor Gentilli (UFES), ou fundamentalíssimo, na interpretação da pesquisadora Veruska Sayonara de Góis.
A liberdade de informação não é exercida pelo jornalista em seu proveito próprio, mas do cidadão, o que o torna um titular formal e indireto de um direito cujo titular direto, último (ou final) e efetivo é o cidadão. O próprio distanciamento topográfico e os respectivos enquadramentos no texto constitucional asseguram claramente essa distinção.
Durante a vigência da obrigatoriedade do diploma, o cidadão sempre expressou seu pensamento, de diversas formas: cartas, reuniões, artigos, telefonemas etc. Mas a principal forma é como fonte de informação dos jornalistas. Qualquer restrição efetiva sempre esteve em outro campo: da ditadura civil-militar ou do escrutínio do dono da empresa jornalística.
Nunca foi a exigência do diploma quem impediu que as empresas quintuplicassem, por exemplo, seus espaços para que os cidadãos os usassem para expressar suas opiniões. Se não o fizerem é porque há motivações ideológicas, a necessidade de moderação e regulação (como revela agora a problemática atuação das grandes empresas mundiais de tecnologia, as big techs) e, o principal: a motivação econômica. Ocorre que no jornalismo industrial-informativo inaugurado com a Revolução Industrial, notícia vende muito mais que opinião. E quem produz essa mercadoria condicionada tanto pelo valor de troca (comercial) quanto de uso é o jornalista.
Assim, ao contrário do entendimento vitorioso à época, é o exercício ético, teórica e tecnicamente orientado, com base em qualificação universitária, quem representa, como já observei antes, “a melhor garantia de acesso do cidadão à esfera de circulação de informações e de debates de ideias, como detentor do direito a, e fonte de, informação”.
Até mesmo na figura de colaborador, reconhecida e protegida pela legislação profissional aos que produzirem regularmente conhecimentos específicos sobre sua especialidade técnica, sem precisar se tornar jornalista e, portanto, sem possuir diploma de jornalista. E novamente os fatos desmentem a ideia: esse dispositivo se mantém vivo na legislação do início até hoje, assim como todo o resto, à exceção – pasmemos! – do único dispositivo que assegurava uma qualificação para o exercício profissional.
Jornalista não narra sua própria história e qualificação não é restrição de acesso ou reserva de mercado
Nem alguns movimentos genuinamente democráticos escaparam da ingenuidade em que se meteram. Provavelmente, porque se baseiam em ideia absolutizada de liberdade. O primeiro equívoco destes é em relação à interpretação das declarações de direitos humanos, que, desde as revoluções Francesa e Estadunidense, garantem a todos o direito de se expressar, por quaisquer meios.
Ocorre que, embora tenha refinado o texto, a Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, promulgada em 1948, baseia-se nas declarações setecentistas em sua concepção básica. Nenhuma delas permite concluir que os cidadãos só serão plenos em seu direito à expressão do pensamento se o fizerem também pelas estruturas de mídia comerciais, públicas, estatais. Antes disso, como ocorre com qualquer instrumento normativo erigido depois de longo e/ou duro período de restrição de liberdades, o que se pretende é colocar o direito à expressão do pensamento a salvo de qualquer censura, e não, a partir de uma leitura exagerada da expressão “expressar-se por qualquer meio”, dotar todos os indivíduos de uma impressora de jornais, de transmissores de rádio ou de TV ou outras estruturas da comunicação pré-redes sociais.
A partir daí, a chamada questão do diploma (para ser jornalista) fez emergir do lado de alguns movimentos sociais legitimamente populares e democratizantes a ideia de que a obrigatoriedade do diploma impede os cidadãos de serem narradores de sua própria história. Embora com outras intenções, alinham-se ao raciocínio das empresas de comunicação que moveram a ação para tornar não obrigatório o diploma: a de que o jornalista é contratado para expressar, com exclusividade, a sua opinião, ou de que narra a sua própria história. Removendo a obrigatoriedade do diploma, teríamos, então, a possibilidade de cada cidadão narrar por si só, por qualquer meio, a sua própria história.
Mas, como já dito, o jornalista não escreve sobre si próprio quando está trabalhando no processo de apuração de informações sobre o que fazem e dizem os outros. Portanto, o jornalista não narra sua própria história, mas a história dos outros, o que requer qualificação e compromissos éticos não necessariamente exigíveis de quem narra sua própria história. São esses outros o objeto do jornalista, e não ele próprio. E se esses outros não são devidamente ouvidos e não têm assegurados os devidos espaços de expressão do seu pensamento, isso nada tem a ver com a exigência do diploma para ser jornalista profissional.
Também já apontei largamente em outras oportunidades que “a obrigatoriedade da formação, em qualquer profissão, não significa nem restrição de direito fundamental nem de acesso à profissão (ou reserva ilegítima de mercado), argumento complementar utilizado contra a obrigatoriedade do diploma, inclusive por setores dos trabalhadores da grande área da Comunicação e da sociedade organizada.
A exigência de um diploma nada mais é do que a necessidade de qualificação prévia, imposta e reconhecida pela sociedade para o exercício de atividades fundamentais. No caso do jornalista, é para exercer o já mencionado mandato social de mediador do conhecimento sobre a realidade cotidiana que tal qualificação foi instituída como requisito a priori”, depois de mais de meio século de luta dos jornalistas brasileiros.
E sigo: “todos podem e sempre puderam ser médicos, advogados, engenheiros… jornalistas, desde que se submetam às regras democráticas e públicas de ingresso nas universidades. E se a condição socioeconômica impede o acesso à Universidade, um problema social real e relevante a ser sempre enfrentado pelo Poder Público, isso também não é culpa da exigência de qualificação para o exercício de determinadas profissões”.
Efeitos negativos a superar com a PEC
Em recente contribuição para uma nota publica, advertir que, “como efeito prático, a medida do STF resultou em uma série de consequências negativas: fechamentos de cursos, usurpação do poder de regulação e regulamentação do Legislativo, eliminação da única qualificação até então exigida para o exercício profissional (hoje sequer é necessário ser alfabetizado), redução de salários e demissões, descredibilização do jornalismo para enfrentamento à indústria de desinformação e à cultura do ódio, eliminação do principal fator de identidade, coesão e fortalecimento profissional, entre outros.
Além de o vazio jurídico resultante da decisão do STF ter significado atribuição indireta do poder discricionário de determinar quem será jornalista aos donos de mídia, alijando a Universidade (pública e universalista por natureza) do processo de determinação do perfil profissional, também permanece inalterado outro poder, de caráter igual e efetivamente regulatório, sempre conferido pelo nosso ordenamento jurídico e por decisões judiciais aos mesmos titulares.
Exercer o direito à expressão do pensamento de livre punho ou viva-voz no interior das organizações jornalísticas é algo que sempre dependeu da decisão dos donos dos veículos de comunicação, um poder que segue inabalado. Esse tipo de direito nunca dependeu do jornalista ou de sua qualificação profissional. O que estes procuram assegurar é o acesso das diferentes vozes sociais aos espaços de opinião pública, numa relação sempre mediada por critérios profissionais.
O enfraquecimento geral do jornalismo e da corporação dos jornalistas fragiliza a representação social que lhes é conferida via Universidade e legislação na disputa cotidiana de conteúdos que se trava no interior das organizações e instituições jornalísticas e da sociedade como um todo. Como reconhece a sociologia das profissões, uma corporação forte, baseada em conhecimento teórico especifico, código deontológico e socialmente reconhecida é a maior segurança de bons serviços prestados à sociedade, e não o contrário.
A recente pandemia da Covid-19 foi um marco muito claro, em todo o mundo, do quanto a informação profissionalmente orientada salva vidas e o quanto a desinformação mata. Diante de um poder obscuro, que descredibiliza a informação e o conhecimento, apostando na desinformação geral como estratégia de poder, a ciência e o jornalismo profissional se sobressaem como salvaguardas fundamentais da população”.
Ao retirar do jornalismo o seu caráter profissional e institucional não só se promoveu desconhecimento sobre o que é o jornalismo; levou-se adiante um projeto de desregulamentação geral da comunicação e se enfraqueceu o jornalismo como poderosa ferramenta do cidadão para a realização do seu direito inalienável à informação sobre o tempo corrente.
Assim como já fez o Senado Federal há mais de 10 anos, a Câmara Federal pode corrigir os rumos da história aprovando a PEC do Diploma, que nunca será perfeita no seu alcance e não foi pensada, como qualquer norma, para dar conta de todas as exceções, mas da regra. E a regra é qualificar todas as atividades fundamentais para os indivíduos e para a sociedade! Quanto mais diplomas, melhor! Especialmente se obtidos em bons cursos.
Notas
[1] A Pec do Diploma, de autoria do então senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE), foi aprovada em duas votações no Senado, com pouquíssimos votos contrários, e aguarda mais de 10 anos para entrar na pauta da Câmara Federal. A proposta é restituir a obrigatoriedade da formação superior para ser jornalista diretamente no texto constitucional, mediante o acréscimo de um artigo no Capítulo da Comunicação Social, o 220-A.
[2] Aqui é preciso registrar a honrosa exceção do Pleno do TRF3, que, em julgamento realizado em 2004, mudou, por unanimidade, o entendimento da juíza Carla Ríster e restituiu a necessidade do diploma, com base na compreensão de que o jornalismo é um trabalho, e não gozo de direito fundamental de expressão do pensamento. A decisão vigorou até 2006, quando, por decisão liminar, o ministro do STF Gilmar Mendes tornou novamente sem efeito a exigência do diploma.
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Edson Luiz Spenthof é jornalista e professor de Direito e Políticas de Comunicação do Curso de Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT – Campus Araguaia). Doutor pela Linha de Pesquisa Jornalismo e Sociedade do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB.