Milhares de torcedores num estádio cheio repetindo a altos brados, durante 70 minutos, xingamentos contra um jogador de futebol, por ser negro, equivalem a um linchamento. Inacreditável não ter havido uma suspensão definitiva do jogo com sua anulação ou a decisão de transferir a partida para outra data sem público. As declarações ou constrições posteriores pronunciadas e divulgadas pelo governo espanhol, diante da vergonhosa imagem exposta do país por esse escândalo mundial de racismo coletivo num estádio de futebol, chegam um tanto tarde.
O que esperavam a liga espanhola de futebol, as instâncias esportivas do pais, o ministro de esportes, o governo espanhol no seu todo para intervir, já que não foi essa a primeira vez? A FIFA e a UEFA só interferem no caso de haver vítimas fatais, ou desconhecem ser o racismo um crime punido pela maioria dos países e, quem sabe, mesmo pela totalidade dos países europeus, sem se esquecer da ONU e dos órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos?
E os patrocinadores dos clubes espanhóis toleram esse clima de arena, consideram normal a excitação lúdica racista para a promoção de seus produtos comerciáveis?
Haveria essa reação mundial sem a denúncia da imprensa? Talvez não, essa não foi a primeira vez que Vinícius Júnior foi alvo de racistas. Mas os dirigentes do futebol espanhol preferiam fechar os olhos… Uma mostra: o árbitro Ricardo de Burgos Bengoecheado, 37 anos, no encontro Real Madrid com Valência, registrou apenas um caso de torcedor chamando Vinícius de macaco, tendo interrompido o jogo por oito minutos por incidente racista. Na sequência, Vini Jr. acabou sendo expulso e sujeito a não participar nos próximos jogos do Real Madrid. Seria o caso da vítima ser punida?
Gianni Infantino, presidente da FIFA, diante das repercussões da crise criada, afirmou já existir um procedimento específico para se aplicar no caso de racismo durante o jogo. Deve ser suspensa a partida, os jogadores se retiram e se faz um anúncio no estádio informando que, se prosseguirem os insultos racistas, o jogo será suspenso e a vitória com seus três pontos será atribuída ao clube do jogador ou jogadores alvos de racismo. Infantino não disse por que esse procedimento ainda não é obrigatório, mas afirmou que deveria ser adotado por todos os países. E por que ainda não foi?
Por sua vez, embora também tardiamente, Luis Rubiales, presidente da Federação Real Espanhola de Futebol, reconheceu haver um problema de comportamento, de educação e de racismo no país, confessando-se consternado por atos que devem ser erradicados. O comitê de competição da Federação, dirigido por Rubiales, tem poderes para fechar tribunas, estádios e convocar uma Comissão governamental contra a violência, xenofobia e racismo nos esportes. Não se entende por que essa comissão ainda não foi convocada.
Não se pode esquecer estar uma parte do racismo espanhol ligada diretamente à extrema-direita fascista, vinda do antigo movimento fascista Fuerza Nueva, dentro da qual se destaca o partido Vox, ultraconservador ultranacionalista, militarista, racista, clerical, pró-imperialista, antifeminista e neoliberal. Partido que conta com o apoio do presidente de La Liga, Javier Tebas Medrano.
Essa crise do racismo espanhol no futebol lembra o velho franquismo e sua longa existência na Europa, mais longa que o salazarismo, como uma perniciosa doença cujas raízes permanecem vivas e, vez ou outra, afloram.
Esse cheiro do enxofre nazista não ficou restrito, na semana, ao episódio vergonhoso do racismo na Espanha. A pretexto de fazer um elogio familiar citando a atual guerra da Ucrânia contra a Rússia, o deputado federal Paulo Bilynskyj, do PL bolsonarista, citou o avô Bohdan Bilynskyj. Seu avô teria sido um herói por ter lutado aos 20 anos contra os comunistas soviéticos numa guerra mundial.
Ora, o deputado que era delegado, portanto deve ter feito curso universitário em Direito, deve saber que, na época do seu avô, havia uma guerra mundial dos aliados EUA, Inglaterra e União Soviética contra a Alemanha nazista. E que lutar contra os comunistas soviéticos equivalia a lutar com os nazistas de Adolf Hitler.]
E que a 14.ª Divisão de Granadeiros da Waffen-SS Galizien, à qual pertencia seu venerado avô, era uma divisão nazista de ucranianos comandada por oficiais alemães. E que ao fazer o elogio póstumo do avô, emigrado ao Brasil em 1948, três anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, fez também o elogio da Waffen-SS e não dos ucranianos que hoje lutam contra a Rússia. Qualquer dúvida, perguntem ao Zelenski.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.