Na mesma semana em que o Congresso Nacional, atendendo à pressão do lobby de fabricantes de bebidas e de radiodifusores, modificou a MP 415 que proibia a venda de bebidas alcoólicas nos bares e restaurantes à beira de estradas federais, permitindo a venda no perímetro urbano e mantendo a proibição na zona rural (23/4), os grandes jornais publicaram um inusitado anúncio de meia página assinado pela Associação Brasileira de Agências de Publicidade (ABAP), com o seguinte título e subtítulo:
‘Querem proibir a publicidade de cervejas no Brasil.
‘É o mesmo que proibirem a fabricação de abridores de garrafas no Brasil.’
O texto prossegue:
‘Nem a propaganda nem o abridor são a motivação para irresponsáveis dirigirem embriagados.
‘A propaganda ou o abridor não são os culpados pela venda criminosa de bebidas alcoólicas a menores.
‘Abridores e a propaganda não são incentivadores dos covardes que praticam a violência doméstica.
‘Essas são questões que só a educação, a democratização da informação e o rigor no cumprimento das leis podem resolver.
‘Por isso proibir a publicidade de cervejas não vai mudar em nada esse quadro.
‘A não ser tirar de você o direito de gostar ou não desta ou daquela publicidade.
‘De se informar e de formar a sua opinião.
‘Um direito tão sagrado quanto o que v. tem de comprar ou não um abridor de garrafas.
‘E decidir o que fazer com ele.’
Restrições legais
Pelo anúncio ficamos sabendo que a publicidade e o abridor de garrafas produzem o mesmo efeito no comportamento de consumo dos cidadãos, isto é, nenhum. Que a publicidade não tem absolutamente nada a ver com os acidentes provocados por aqueles que dirigem embriagados; ou pelo consumo de bebidas alcoólicas por menores ou ainda com aqueles que, embriagados, cometem violência doméstica. E mais: que a publicidade oferece apenas informação, pura e simples, ao cidadão – aliás, um direito sagrado dele (publicidade e jornalismo seriam a mesma coisa?).
O que o anúncio não informa é quem quer proibir a publicidade de cervejas, nem como e nem por quê.
Na verdade o anúncio da ABAP faz parte de uma campanha pública para pressionar deputados e senadores a rejeitar o PL 2.733/2008, que teve sua origem no Executivo e foi proposto pelos ministérios da Saúde, da Educação, da Justiça e pelo Gabinete de Segurança Institucional. Trata-se de uma alteração na Lei n. 9.294 de 1996 – aprovada pelo Congresso e assinada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, pelos então ministros da Saúde (Adib Jatene), Justiça (Nelson Jobim) e Arlindo Porto (Agricultura) – para adaptá-la à Política Nacional sobre Álcool (decreto nº 6.117/2007) que considera a cerveja como bebida alcoólica.
Dessa forma, como já acontece com os produtos derivados do tabaco, de medicamentos e terapias e de defensivos agrícolas, a publicidade de cerveja estaria também sujeita a restrições legais, nos termos da lei, como manda o artigo 220 da Constituição.
Regular horários
E quais seriam as restrições de acordo com o Art. 4° da Lei n. 9.294/96?
‘Somente será permitida a propaganda comercial de bebidas alcoólicas nas emissoras de rádio e televisão entre as vinte e uma e as seis horas.
‘§ 1° A propaganda de que trata este artigo não poderá associar o produto ao esporte olímpico ou de competição, ao desempenho saudável de qualquer atividade, à condução de veículos e a imagens ou idéias de maior êxito ou sexualidade das pessoas.
‘§ 2° Os rótulos das embalagens de bebidas alcoólicas conterão advertência nos seguintes termos: `Evite o Consumo Excessivo de Álcool´.’
O texto da lei mostra, portanto, que o direito sagrado do cidadão/consumidor à informação não foi respeitado pelo anúncio da ABAP: o projeto que tramita no Congresso Nacional (ao qual, aliás, o anúncio não faz referência direta) não pretende proibir a publicidade de cerveja, mas apenas regular os horários de sua veiculação no rádio e na TV para evitar que seja ouvida/vista, sobretudo, por jovens em fase de formação de hábitos de consumo.
O contrário
Outro desrespeito sério ao direito sagrado à informação é a omissão, pelo anúncio da ABAP, das causas que levaram o Executivo a propor a inclusão da cerveja como bebida alcoólica na Lei 9.294. Os dados disponíveis indicam que o consumo de álcool ocorre em faixas etárias cada vez mais precoces, funcionando como porta de entrada para o vício e o consumo de outras drogas.
No domingo (27/4), a manchete de primeira páginas do Jornal do Brasil informava que ‘Propaganda de bebidas leva jovens para o vício’ e a matéria relatava que:
‘Tem gente nova chegando aos grupos de mútua ajuda da irmandade Alcoólicos Anônimos. Gente muito nova. O perfil do dependente vem mudando nos últimos anos, e hoje é comum encontrar adolescentes buscando auxílio para se manterem longe da bebida. (…) Coincidência ou não, o fenômeno vem a reboque de uma das maiores ofensivas publicitárias de que se tem notícia, empreendida pelos fabricantes de cerveja, que investem cerca de R$ 1 bilhão por ano em anúncios, grande parte deles – estima-se que 80% – na televisão.
‘– A cerveja virou refrigerante, foi desmistificada como bebida alcoólica. Aumentou muito o número de jovens por aqui – confirma J., 75 anos, diretor do escritório de serviços do AA no Estado do Rio, com o cuidado de não se aprofundar em questões polêmicas, um dos postulados da instituição.
‘A psiquiatra Maria Thereza de Aquino, diretora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Atenção ao Uso de Drogas (Nepad), da UERJ, constata que o álcool é hoje a porta de entrada para as drogas e acredita na relação da publicidade na TV com o início precoce.
‘– A propaganda estimula. Ninguém daria R$ 1 milhão a um pagodeiro para anunciar seu produto se isso não aumentasse a venda – raciocina. – Não se faz publicidade para diminuir o consumo.’
Se tomarmos o anúncio da Associação Brasileira de Agências de Publicidade sobre cervejas e abridores de garrafa – um negócio de mais de 1 bilhão de reais/ano – como referência, passaremos a ver todos os anúncios veiculados na mídia brasileira com desconfiança. Ele faz exatamente o contrário do que afirma ser um direito sagrado do cidadão/consumidor: o direito à informação correta e à publicidade verdadeira.
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squisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)