JORNAL EM CRISE
Inferno na torre do Times
‘Quando um livro revelando bastidores do New York Times chegou às livrarias nos anos 60, o resenhista do jornal abriu sua crítica à obra dizendo que se sentia como se estivesse escrevendo sobre mazelas do Vaticano para L’Osservatore Romano. ‘É um ritual de mortificação pública’, definiu. Na quarta-feira passada, deu-se algo parecido. No alto da página 6 do caderno de economia do Times, uma reportagem noticiou que o grupo proprietário do jornal teve um prejuízo de 74,5 milhões de dólares no primeiro trimestre do ano. A matéria era uma autoflagelação em dezessete parágrafos, mas desincumbiu-se da tarefa com garbo. Afirmou que o prejuízo decorreu da queda na receita publicitária em papel (28,4%) e na internet (8%), contextualizou, comparou e projetou números, e lembrou que o prejuízo de agora é brutalmente superior ao registrado no primeiro trimestre do ano passado, que ficou em 335 000 dólares. O conteú-do da reportagem é expressão de duas marcas do Times, uma legendária, outra tenebrosa: a excelência de seu jornalismo, que acaba de lhe render cinco Pulitzer, o prêmio mais prestigiado da imprensa americana, e a sua dramática situação financeira. Tão dramática que, aqui e ali, já se ouve uma pergunta que, pouco tempo atrás, era inimaginável: o Times vai fechar ou ser vendido?
Pelo mundo afora, os jornais sentem a agulhada de uma conjunção de fatores especialmente desfavoráveis: a recessão mundial, que reduz os gastos com publicidade, e o avanço da internet, que suga anúncios, sobretudo os pequenos e rentáveis classificados, e também serve como fonte – em geral, gratuita – de informações. Na Inglaterra, para sobreviver, os jornais querem leis menos severas para fusão e aquisição de empresas. Na França, o governo duplicou a verba de publicidade e dá isenção tributária a investimentos dos jornais na internet. Mas em nenhum outro lugar a tormenta é tão assustadora quanto nos Estados Unidos. A recessão atropelou os dois maiores anunciantes – o mercado imobiliário e a indústria automobilística –, e a evolução da tecnologia, com seu impacto sísmico na disseminação da informação, se dá numa velocidade alucinante no país. (Agora mesmo, o Twitter, misto de microblog com site de relacionamento criado em São Francisco, passou a ser usado por celebridades, e explodiu: captura 8 300 novos adeptos por hora.)
O binômio recessão-internet está produzindo uma devastação. O Rocky Mountain News, de Denver, no Colorado, encerrou um século e meio de vida em fevereiro passado, fato que mereceu manchete de primeira página do rival Denver Post. O Cincinnati Post, de 1881, fechou. O Philadelphia Inquirer, um dos vinte maiores jornais do país, com 180 anos de circulação, pediu concordata. A Tribune Company, que publica títulos como Los Angeles Times e Chicago Tribune, também pediu concordata. O histórico San Francisco Chronicle está à beira da morte. Se ele fechar, São Francisco será a primeira grande cidade americana a não ter um jornal local. O Seattle Post-Intelligencer, cujos repórteres eram confundidos no exterior com ‘agentes da CIA’ devido ao ‘intelligencer’ no nome do jornal, fechou sua versão impressa e agora só existe on-line. O Christian Science Monitor também encerrou sua operação em papel. Em San Diego, o San Diego Union-Tribune luta para sobreviver num ambiente inóspito: a cidade já conta com dois jornais virtuais e um deles, Voice of San Diego, não tem fins lucrativos. Vive de doações. O Boston Globe, do mesmo grupo do Times, está no abismo. Ou corta 20 milhões de despesas ou será vendido. Ou fechado.
No New York Times, a recessão e o estrago da internet se somaram a decisões duvidosas do grupo empresarial, como a compra do Boston Globe e a construção de uma suntuosa sede na Oitava Avenida, no coração de Nova York. Hoje, o grupo deve 1,1 bilhão de dólares. Já vendeu parte do novo prédio, por 225 milhões de dólares, e tomou emprestados 250 milhões com o bilionário mexicano Carlos Slim, dono da Claro e da Embratel no Brasil. Em 2002, o Times valia 5 bilhões de dólares e sua ação, 52 dólares. Hoje, seu valor caiu para 700 milhões e sua ação é negociada por volta dos 4 dólares – preço de sua edição dominical na banca. ‘Os analistas acham que, com a venda da sede e o empréstimo, o Times ganhou dois anos de sobrevida’, diz Penny Abernathy, que trabalhou com Arthur Sulz-berger Jr., da família que controla o jornal desde 1896. Penny, hoje professora na Universidade da Carolina do Norte, antecipou a VEJA uma análise de 23 páginas que preparou para apresentar num simpósio. No documento, ela discute quatro saídas para o Times. Só uma mantém o jornal como um negócio privado. As outras vão da criação de uma fundação à venda do título a alguma universidade. Só essa discussão, assim serena, dá uma medida dos novos tempos: parece que nem o Times, a bíblia da imprensa americana, há de fazer falta se sumir do mapa.
O fechamento de um jornal é o fim de um negócio como outro qualquer. Mas, quando o jornal é o símbolo e um dos últimos redutos do bom jornalismo, não importa quanto isso custe, como é o caso do Times, morrem mais coisas com ele. Morrem uma cultura e uma visão generosa do mundo. Morre um estilo de vida romântico, aventureiro, despojado e corajoso que, como em nenhum outro ramo de negócios, une funcionários, consumidores e acionistas em um objetivo comum e maior do que os interesses particulares de cada um deles. Desde que os romanos passaram a pregar em locais públicos sua Acta Diurna, o manuscrito no qual informavam sobre disputas de gladiadores, nascimentos ou execuções, os jornais começaram a entrar na veia das sociedades civilizadas. Mas, para chegar ao auge, a humanidade precisou fazer uma descoberta até hoje insubstituível (o papel), duas invenções geniais (a escrita e a impressão) e uma vasta mudança social (a alfabetização). Por isso, um jornal, ainda que seja um negócio, não é como vender colírio ou fabricar escadas rolantes. A Áustria orgulha-se de ter o diário mais antigo do mundo, o Wiener Zeitung, de 1703. A Suécia lamentou quando, há dois anos, o Post-och Inrikes Tidningar, o mais antigo semanário do mundo, de 1645, passou a existir só na internet. Nos EUA, a agonia dos jornais tem impacto especial pelo papel histórico que tiveram na construção da democracia e na introdução de uma relíquia constitucional – a garantia da liberdade de expressão, que ocupa lugar vital nos valores americanos. O dramático é que muitos leitores não parecem incomodados com a ameaça sobre os jornais. Uma pesquisa mostra que 42% dos americanos sentiriam ‘pouco’ ou ‘nada’ se seu jornal fechasse.
‘Vivemos a mais grave crise da história da imprensa’, diz o veterano editor Alan Mutter, autor do influente blog Reflections of a Newsosaur – algo como ‘Reflexões de um Jornassauro’ –, em que analisa o impacto das novas tecnologias sobre os jornais. ‘Mas eu não acredito que o Times vá fechar.’ Especula-se que o Times poderia operar só na internet de segunda a sábado, preservando em papel a edição dominical – nela, anúncio avulso em cor e página inteira custa 270 000 dólares. Mas ninguém descobriu como viabilizar-se financeiramente na internet, arrecadando o bastante para bancar um jornalismo de alto padrão. O site do próprio Times é um bom exemplo. É uma pérola do jornalismo on-line. Com 20 milhões de visitantes por mês, oferece perfis e gráficos interativos, tem um arquivo com matérias do século XIX, áudios e vídeos de qualidade irretocável e oferece links até para a concorrência. Mas não se sustenta. Para mandar repórteres ao Darfur, à Amazônia ou ao Tibete, o Times gasta 200 milhões de dólares por ano. Sai caro, mas talvez isso esteja ficando desimportante aos olhos de um público aparentemente satisfeito com a qualidade – deplorável – do que se produz na internet. A febre atual nos EUA é o ‘jornalismo cidadão’, já com mais de 450 blogs. O ‘jornalismo cidadão’ é feito por qualquer um que tenha conexão com a internet e seja alfabetizado (ou quase). É até divertido. Mas será pior um mundo em que iniciativas amadoras substituam o jornalismo profissional na busca, seleção e difusão de informações de qualidade.
O Times está se contorcendo para manter o padrão do seu trabalho. ‘Já cortamos na cobertura nos arredores de Nova York’, diz Bill Keller, o diretor do jornal. ‘Mas o grosso da nossa cobertura, que é a reportagem no exterior, em Washington, em economia, na cultura, isso não foi afetado. A empresa trabalha para preservar o jornalismo.’ Quem acha que a internet é o nirvana da democratização da informação precisa lembrar que o Google tem seu quase monopólio – e divulga notícias de ‘25 000 fontes’ sem pagar um tostão por elas. E quem acha que a internet, por sua natureza virtual, dissemina mais informação e eleva a cultura das massas precisa ir devagar. O site do Times, com seus 20 milhões de usuários, é o maior site de jornal do mundo. Mas, em média, seus visitantes ficam no site 35 minutos – por mês. Ou 1,10 minuto por dia. Não dá tempo de ler nem um gibi. É como se os internautas passassem numa banca, dessem uma olhada nos títulos expostos e fossem embora. Sem ler nada. É perturbador.’
TECNOLOGIA
Leo Branco
Ela quer o seu netbook
‘A estrela da propaganda, exibida nos Estados Unidos há um mês, é Lauren, uma jovem simpática de cabelos avermelhados. Ela quer pagar pouco por um notebook. Vai a uma loja da Apple e sai correndo. ‘Não sou bacana o bastante para ter um Mac’, diz. A história termina com a compra de um laptop de 699 dólares, equipado com Windows. E Lauren, orgulhosa, observa: ‘Eu tenho um PC e tenho o que quero’. Bem-humorada, essa é a resposta da Microsoft a uma campanha da Apple, na qual um sujeito certinho e convencional, chamado de PC, é constantemente ridicularizado por um garotão, o Mac. Com esse inusitado contra-ataque, a Microsoft sugere que pode não ser descolada como a concorrente, mas está em sintonia com o espírito do tempo: em meio à crise econômica, gastar pouco é a palavra de ordem. A mensagem é tanto mais significativa dada a ascensão dos netbooks, aparelhos ainda mais baratos do que aquele que Lauren leva para casa e que, dizem os analistas, devem ser os computadores com o maior crescimento de vendas nos próximos anos. Desde meados de 2008, a Microsoft age para dominar esse mercado. Já alcançou um feito extraordinário: com uma política de preços agressiva, que disponibiliza o Windows XP por 15 dólares para os fabricantes de netbooks, ela conseguiu embutir o seu sistema operacional em 96% desses computadores portáteis – sua fatia de mercado, dez meses atrás, era de apenas 10% (veja o quadro abaixo). Seu objetivo, no entanto, é manter a hegemonia depois do lançamento de seu novo software, o Windows 7, previsto para janeiro de 2010.
Para encorajar a adoção do Windows 7 nos netbooks, a Microsoft desenvolveu uma versão ultraleve do programa, a Starter. A companhia reconhece que ela é limitada: com mais de dois programas em funcionamento simultâneo, o computador já deverá ter uma queda brutal de desempenho. Net-books novos equipados com o sistema operacional, no entanto, terão ‘dormentes’ duas versões mais robustas do Windows 7 – a Home Premium e a Ultimate. Para ativá-las, bastará comprar um código pela internet. Há certo ceticismo no mercado em relação a essa estratégia. Poucas das grandes fabricantes de net-books divulgaram até agora planos de aderir ao Windows 7. A maioria ainda tem dúvidas se os consumidores vão aceitar a ideia de comprar um produto limitado e depois gastar mais dinheiro para incrementá-lo. Elas dizem, além disso, que o Windows XP já funciona bem o bastante em seus equipamentos. Esse é, portanto, o dilema para a Microsoft: se não convencer a indústria a aderir ao novo sistema que está para lançar, ela talvez se veja obrigada, para não perder mercado, a continuar a venda do velho XP a preço de saldão. Péssima notícia, visto que a linha Windows representa mais da metade de seu lucro operacional.’
OTTO STUPAKOFF
Retratista da fama
‘Nos anos 50, depois de concluir um curso de fotografia em Los Angeles, o paulistano Otto Stupakoff recebeu a missão de fazer um ensaio com a cantora Carmen Miranda. Então com menos de 20 anos, ele viveu um relacionamento rápido com a artista. ‘Carmen adorava homens mais novos’, recordaria mais tarde. Iniciava-se aí a relação dele com o mundo da fama – o que marcaria sua carreira. Stupakoff – morto na quarta-feira 22, aos 73 anos – foi o primeiro fotógrafo de moda brasileiro a obter prestígio internacional. Em 1965, ele se mudou para Nova York. Enfrentou dificuldades, a princípio. Mas, ao ser convocado como opção de emergência para um ensaio da Harper’s Bazaar, caiu nas graças da revista. Dali em diante, fotografou para publicações como Vogue, Elle, Esquire e Cosmopolitan. Para além da moda, foi um poderoso retratista de celebridades.. ‘Tirar um retrato é uma ação de responsabilidade enorme. A fotografia captura a alma das pessoas’, dizia. Figuras como o ex-presidente americano Richard Nixon, o escritor Truman Capote, a atriz Bette Davis e o compositor Tom Jobim posaram para ele. Charmoso e sedutor, Stupakoff teve acesso à intimidade de estrelas como Sophia Loren e Grace Kelly. Em 1973, protagonizou um desentendimento célebre com Jack Nicholson, numa sessão que durou poucos minutos. ‘Nunca alimentei a ilusão de que me tornaria amigo das modelos ou das celebridades’, declarou em 2007 à revista Bravo. ‘Mas precisava criar um relacionamento com elas para que a foto pudesse surgir de dentro.’ Casado por quatro vezes e pai de seis filhos, Stupakoff morava sozinho em São Paulo desde 2005. O fotógrafo, que sofria de um transtorno cerebral degenerativo, foi encontrado morto em seu flat.’
TELEVISÃO
Rabugento e poderoso
‘Numa entrevista recente, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, definiu desta maneira a atmosfera política ácida na capital de seu país: ‘Washington é como American Idol – exceto que todos são Simon Cowell’. A menção a Simon Cowell é um bom indício da notoriedade que esse inglês de 49 anos conquistou – não apenas na cultura popular dos Estados Unidos, mas ao redor do mundo. Na bancada julgadora do célebre show musical, ele tornou-se um personagem antológico: o jurado rabugento, implacável, brutal. Mas Cowell tem outra faceta, que veio ao primeiro plano nos últimos quinze dias: a de empresário do showbiz. Foi a escocesa Susan Boyle que ajudou a ressaltar esse outro lado. A esta altura, as imagens da mulher feiosa mas de voz excepcional, interpretando de maneira emocionante a canção I Dreamed a Dream, já foram vistas mais de 100 milhões de vezes somente no site YouTube. A apresentação original, contudo, aconteceu no Britain’s Got Talent, um show de calouros da TV britânica que tem Cowell não apenas como jurado, em seu papel habitual, mas também como ‘dono’ (ele produz o show e detém seu formato). Logo ficou claro que Cowell vai lucrar muito com a ascensão dessa diva inesperada. A audiência do Britain’s Got Talent certamente crescerá nas próximas etapas da competição, com os ganhos publicitários que isso acarreta. Além disso, os direitos sobre a carreira musical de Susan pertencem a Cowell, que já anunciou: ‘É claro que vai haver um disco’. Ainda que seja a mais sensacional descoberta de Cowell, Susan não é a primeira nem a única no plantel de sua empresa, a Syco. Além do Britain’s Got Talent, no ar desde 2007, ele está nos bastidores de um outro programa de sucesso, o The X Factor (iniciado em 2004). Estima-se que já tenha amealhado uma fortuna de mais de 200 milhões de dólares.
Cowell é filho de um ex-executivo da gravadora EMI e de uma dançarina. Entrou para a indústria musical nos anos 70 e na década seguinte lançou seu próprio selo, o Fanfare – que faliu em 1988. Poucos meses depois, foi contratado como diretor artístico da gravadora BMG e investiu na contratação de artistas pop meio chinfrins, como o grupo Westlife e a cantora Sonia. Então, em 2001, seu amigo Simon Fuller, mentor das Spice Girls, criou um programa de calouros chamado Pop Idol e o convidou para ser jurado. Suas tiradas contra os candidatos eram tão venenosas – e tão divertidas – que Cowell foi exportado para a versão americana do programa, o American Idol. O resto é história. Com audiência média de 25 milhões de pessoas, esse show tornou-se não apenas o carro-chefe do canal pago Fox, mas o programa mais popular da TV americana. Cowell, a estrela, tem salário de 36 milhões de dólares por ano.
No começo deste mês, Cowell deu uma entrevista ao jornal inglês The Daily Mirror afirmando que pode deixar o American Idol no fim de 2009. Ele diz estar cansado. Deve ser verdade. Sua vida tornou-se um vaivém entre Inglaterra e Estados Unidos. Num dia ele está num lado do Atlântico, castigando calouros do American Idol; no dia seguinte, está no lado oposto, produzindo e estrelando seus próprios shows. Nem mesmo a estafa mais profunda deve tornar fácil a decisão de abdicar da dinheirama de 36 milhões de dólares. Mas Cowell deve ter feito as contas. Seu contrato com a Fox impede que ele venda uma versão do Britain’s Got Talent (que já está em quarenta países) nos Estados Unidos. Desfeito o vínculo com a emissora, ele ganharia liberdade para levar ao país o seu próprio show. Dias depois da já mencionada entrevista de Obama, Cowell foi ao mesmo programa, o do apresentador Jay Leno, que lhe pediu um comentário. Sua resposta: ‘Provavelmente Obama quis dizer que as pessoas agora estão mais inteligentes em Washington’. Vá discutir com ele…’
Marcelo Marthe
Luz, câmera, bisturi
‘Numa cena do programa E24, que estreou há duas semanas na Bandeirantes, uma médica desabafa: ‘Sempre que alguém reclama à toa que está deprimido, eu falo: ‘Dá uma volta conosco que isso passa’. Como profissional de um serviço de emergência, ela testemunha toda sorte de drama médico nas ruas de São Paulo. A mesma lógica – a de que conhecer a desgraça alheia ajuda as pessoas a pôr seus próprios problemas em perspectiva – talvez sirva para explicar o que leva os espectadores a ver uma atração como E24. Esse ‘docu-reality’, misto de documentário com reality show, revela a rotina dos serviços de emergência, bem como a de três hospitais públicos paulistanos em toda a sua crueza. Os produtores acompanharam os momentos críticos de 170 atendimentos, em muitos dos quais se flagraram pacientes na sala de cirurgia, não raro à beira da morte (alguns não sobreviveram, como se verá no ar em breve). A única tentativa de suicídio nas 1 500 horas de gravação foi explorada logo no primeiro episódio, sobre o resgate de um idoso que se ferira com uma faca. Nesse mesmo programa, conferiu-se a ressuscitação de um paciente com parada cardíaca. Durante uma cirurgia num bandido baleado, exibiu-se para a câmera não só seu rim danificado, como ainda o pedaço dele arrancado por uma bala. E24 tem um pé no sensacionalismo, mas não deixa de ser também didático: os procedimentos são explicados em minúcias pelos médicos. Sua média de 7 pontos no ibope na Grande São Paulo já é a segunda maior da Bandeirantes.
Nos anos 90, o seriado americano ER demonstrou que o pronto-socorro, com seu dia a dia de drama e adrenalina, pode ser um cenário para a TV. Os reality shows sobre o tema vieram na esteira dele – curiosamente, valendo-se de seus achados narrativos para explorar o lado real desse universo. O pioneiro foi o impactante Sala de Emergência, gravado em grandes hospitais dos Estados Unidos. O filão se diversificou desde então. A última novidade é a série Hopkins, do canal Discovery Home & Health, que enaltece os médicos de um dos mais conceituados hospitais americanos. O interesse do público por cirurgias (quando realizadas nos outros, é claro, e a uma distância asséptica) também explica o sucesso do site www.orlive.com, que veicula vídeos de todo tipo de intervenção e recebe 100 000 visitantes por mês.
E24 é a versão brasileira de um programa argentino já adaptado em países como Chile e Itália. Sua produtora, a Cuatro Cabezas, é a mesma que licencia o humorístico CQC à Bandeirantes. Na semana passada, uma empresa brasileira acusou os produtores de plágio. A Medialand afirma que em janeiro passado enviou à Band amostras de um programa de sua criação nos mesmos moldes. ‘Nos surpreendemos ao ver nossas ideias no E24’, diz a proprietária Carla Albuquerque. A Cuatro Cabezas, por sua vez, anuncia que tomará medidas judiciais contra a acusadora. ‘O E24 existe há seis anos. A Medialand é que vai ter de se explicar’, diz seu representante, Diego Barredo.
Em todos os países, o E24 foi ambientado em hospitais públicos. ‘Nesses locais, encontramos casos complexos e profissionais valorosos’, diz Barredo. O programa obteve permissão para atuar em três instituições que lidam com um painel variado de problemas (veja o quadro). Nas gravações, só um câmera e um produtor podem entrar nas salas cirúrgicas. As mulheres têm revelado mais estômago diante de situações extremas. ‘Três homens pediram para sair porque não aguentaram’, diz Barredo. A cada caso registrado, a equipe pede autorização por escrito de todos os envolvidos, dos pacientes aos enfermeiros, para não ter problemas jurídicos ao expô-los no ar.
Na visão de um especialista na área, isso não elimina os problemas éticos. ‘Pedir que as pessoas assinem uma autorização sob tanta pressão é uma forma de coerção’, diz Milton Glezer, dos hospitais das Clínicas e Albert Einstein. Além disso, lembra ele, os plantonistas nos prontos-socorros brasileiros são em sua maioria recém-formados com pouca experiência e mais suscetíveis à tensão. ‘A presença de câmeras nessas condições pode afetar a qualidade do atendimento’, diz Glezer. Tudo indica, contudo, que o show vai continuar. O programa é considerado uma boa vitrine pelos administradores dos hospitais. Apenas um entre cada dez médicos abordados nas gravações negou-se a participar delas. E estão avançadas as negociações para que episódios futuros sejam feitos no pronto-socorro do Hospital das Clínicas, o mais importante de São Paulo.’
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