Meio sem querer, descobri um debate (em 2018) entre nossos antigos colegas, o Clovis Rossi e o Ricardo Kotscho. Eram vésperas das eleições presidenciais e começava a influência incontrolável do fenômeno das redes sociais (não se falava ainda em fake news).
Kotscho foi o primeiro a levantar a novidade da participação aberta da extrema-direita nas eleições. Mas nenhum desses dois grandes da nossa profissão sentiu o enorme buraco que se abriria na vida política brasileira com a vitória de Bolsonaro, até ali um quase desconhecido, com o surgimento de um neo-fascismo bolsonarista.
O debate foi na Faculdade de Jornalismo, está no arquivo do Observatório da Imprensa, e vale por nos mostrar que a realidade política muitas vezes ultrapassa nossa percepção. Podemos imaginar, mas sempre é difícil prever, não somos videntes.
Ninguém também poderia ter previsto que teríamos mais de 700 mil mortos na crise sanitária do Covid, por culpa do negacionismo do presidente Bolsonaro e por incapacidade, má formação e má orientação dos seus ministros da Saúde.
Nem se poderia ter pressentido o outro genocídio, o do povo yanomami na Amazônia, por culpa do mesmo Bolsonaro e de sua ministra Damares Alves. E ninguém poderia vaticinar, quase ao mesmo tempo, há justamente um ano, ainda na região amazônica, os assassinatos cometidos contra o indigenista Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom Phillips. Seguidos agora pela decisão do Congresso de reduzir os poderes dos atuais Ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima e dos Povos Indígenas, restringindo-se drasticamente a proteção das terras indígenas.
E era inimaginável que, em fevereiro do ano passado, o presidente Putin decidisse atacar e invadir a Ucrânia, desfechando uma guerra que ainda perdura e poderá mesmo se alastrar, colocando em perigo a estabilidade e a paz mundial. Uma guerra fratricida, na qual além das vítimas civis, morrem diariamente soldados tão jovens com rostos ainda de crianças. Um crime contra a humanidade, do qual muitos apoiadores – e isso é inquietante – são tanto extremistas de direita como extremistas de esquerda.
Nós, jornalistas, não poderíamos prever e nem imaginar tal retrocesso.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.