O jornalismo precisa das pessoas para sobreviver. Esta afirmação ganhou um novo significado na era digital, principalmente agora com a chegada da inteligência artificial (IA). Até agora, o cidadão comum era visto como um mero consumidor da commodity notícia, desenvolvida e disseminada por jornalistas e pela imprensa. As escolhas do público também serviam de parâmetro estatístico para medir o grau de aceitação, de popularidade e relevância das notícias.
Mas hoje, produzir notícias deixou de ser uma exclusividade dos profissionais e das empresas jornalísticas, graças à avalanche informativa na internet e nas redes sociais. Os algoritmos, usando os recursos da inteligência artificial, tendem a tomar boa parte do espaço hoje ocupado pelos jornalistas na pesquisa e recombinação dos elementos que compõem uma notícia. Mas, caberá aos profissionais a insubstituível função de educar e orientar as pessoas sobre quais notícias, geradas com a ajuda da IA, podem ser consideradas confiáveis e relevantes para os integrantes de comunidades sociais.
O auê que está sendo criado em torno da inteligência artificial tem origem no fato de que ela pode vir a substituir as atividades mecânicas na hora de montar uma notícia. Todo repórter sabe que uma reportagem é formada, idealmente, por um trabalho de campo (observação da realidade), consulta a fontes (testemunhas e especialistas), seguidos da montagem e recombinação destas peças num texto, áudio ou imagens a serem consumidos por leitores, ouvintes ou telespectadores. Na era analógica, este processo ainda dependia muito da capacidade intelectual do repórter ou editor, principalmente na hora de organizar os fatos, eventos e valores incorporados a uma notícia textual, sonora ou visual.
Agora, na era digital, quase tudo o que dependia de ações mecânicas, logo, repetitivas, está sendo substituído pelos algoritmos que buscam e processam zilhões de dados, fatos e eventos na internet numa velocidade, diversidade e amplitude impossíveis de serem alcançados por qualquer ser humano, inclusive os gênios. Um algoritmo pode, por exemplo, usando dezenas de descrições de um evento, publicadas sob diversas formas na internet, recombinar partes de cada uma das observações e criar a sua própria descrição, sem que o repórter ou editor precise sair de sua cadeira. É claro que isto não substitui a riqueza de detalhes personalizados de um repórter qualificado, mas pode preencher perfeitamente as necessidades de um boletim de notícias de atualidade (hard news).
Uma questão de confiança
Isto, provavelmente, vai contribuir para o esvaziamento das redações em programas tipo notícias 24 horas como Globo News e CNN. A rapidez e o baixo custo destas operações algorítmicas de produção massiva de notícias vai também alimentar novos negócios e, consequentemente, aumentar a concorrência, onde as preocupações éticas e o senso de responsabilidade informativa podem muitas vezes ser atropelados pela ânsia em arrebanhar audiências.
É aí que as pessoas voltam a ser importantes para o jornalismo. A sobrevivência de um projeto vai depender da sua capacidade de estabelecer interatividade com o seu público-alvo, ao ajudá-lo a identificar critérios de relevância e confiabilidade na seleção de notícias. Estes critérios não podem ser estabelecidos só pelos profissionais porque o jornalista é apenas uma componente da realidade vivida pelo público-alvo. Ele precisa criar uma relação de confiança mútua com os moradores de uma comunidade.
Na era analógica, a relação do jornalismo com o conjunto dos cidadãos sofreu o impacto da comercialização da notícia e da elitização da imprensa. Além do distanciamento provocado pela necessidade de “vender” a notícia, a imprensa se vinculou cultural, política e financeiramente às elites no poder, processo no qual ela acabou se transformando numa espécie de parlatório de líderes do establishment regional, nacional e internacional. Obviamente, isto acabou se refletindo nas pautas jornalísticas, que passaram a refletir o jogo do poder, com pouco ou nenhum interesse por parte do grande público.
Quebrar este paradigma na era digital se tornou uma estratégia de sobrevivência tanto para o jornalismo, integrado por profissionais assalariados ou não, como para as empresas jornalísticas que formam a instituição chamada imprensa. A notícia está deixando rapidamente de ser um produto financeiramente lucrativo para se transformar em gênero de primeira necessidade na vida de uma pessoa.
O público começa a perceber a importância vital da informação, mas enfrenta uma série de percalços, como desorientação, insegurança e desconfiança em notícias geradas pela perturbadora combinação da avalanche informativa com a inteligência artificial. Dilemas que só podem ser superados por meio da integração entre público e jornalistas.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.