Talvez este texto possa ser levemente diferente do que estamos acostumados aqui no objETHOS (mas, nem tanto assim também…). Minha proposta é uma reflexão sobre o papel do jornalismo na sociedade e na democracia, para isso, tomo (e celebro) a presença de uma bancada formada por dois jornalistas negros no Jornal Nacional.
O feito ocorreu pela primeira vez (em 50 anos!) no mês de abril, quando Aline Midlej e Heraldo Pereira formaram a primeira dupla negra a ocupar a bancada do Jornal Nacional no dia 14/04/2023. E essa semana o feito se repetiu, os jornalistas apresentaram o JN, substituindo Renata Vasconcellos e William Bonner por alguns dias.
Acho que o ditado popular: “antes tarde do que nunca” consegue ilustrar parte da sensação do público ao ver dois âncoras negros apresentando um dos jornais mais tradicionais e de maior audiência do Brasil. Mas, embora digno de ser celebrado, o feito nos convida à reflexão sobre o papel do jornalismo: se estamos sendo ativos ou reativos na sociedade…
Deixe-me explicar melhor, embora a audiência do JN tenha caído pela metade nos últimos 20 anos, ele ainda é muito representativo e simbólico. Para muita gente, ocupar a bancada do jornal em questão é a referência do que um jornalista faz e é. Portanto, pequenas mudanças que ocorrem no programa estão sustentadas por anos de transformação, legitimadas quando transmitidas no horário nobre da televisão brasileira.
Das mais sutis às mais representativas, temos desde a barba do William Bonner, a sua caminhada pelo cenário até a presença da primeira jornalista negra a ocupar esse espaço. E cada uma delas reflete anos de transformação social!
Ao analisar esses pontos, percebemos que o jornal (pelo menos os mais tradicionais) tem assumido uma postura bastante reativa, ou seja, primeiro muda na sociedade para aí então ser absorvida pelas empresas de jornalismo.
E aqui, eu me limito a abordar apenas o aspecto do jornalismo materializado, das empresas e do que chega ao público, não adentrando na seara do que o jornalismo deveria ser, tampouco no campo das ideias e das teorias.
Por isso, voltando a bancada do JN, cabe refletir não mais sobre a demora para que ela fosse composta por jornalistas negros, mas sim quais os próximos passos a partir de agora… No atual cenário, Aline e Heraldo apenas substituíram os âncoras principais, Renata e William. Portanto, nesse aspecto, ainda temos uma longa caminhada para que a presença negra seja efetiva no JN: englobando âncoras, repórteres, produtores, correspondentes, produtores e diretores.
Vale lembrar que o Brasil é negro: mais de 55% da nossa população se identifica como preto ou pardo, segundo o IBGE. Portanto, o mínimo, é que o jornal e qualquer outra empresa reflita esse número.
E, sim, existem inúmeros fatores que contribuíram e ainda continuam mantendo esse quadro embranquecido, mas é nosso dever enquanto cidadãos – e ainda mais como jornalistas – agir, sermos antirracistas e promotores de mudanças no ambiente em que estamos inseridos. E quem ganha com isso é a sociedade, o jornalismo e nossa democracia. Afinal, não é o jornalismo que se legitima a partir da argumentação do seu papel essencial à democracia?
E para desempenhar essa função, é esperado que haja representatividade, igualdade e liberdade dentro do seu próprio campo, para aí então poder fornecer informações que efetivamente contribuam para uma sociedade democrática… Se isso não ocorre, precisamos refletir sobre essa compreensão “adaptada” de democracia e, não só isso, ponderar se é legítimo que o jornal se apoie na retórica de que é fundamental a ela.
Fontes de informação existem aos montes, sendo que todas elas podem contribuir para o regime democrático positivamente ou negativamente. Acredito que a grande questão que nos chama a reflexão é como nós jornalistas estamos lidando com esse cenário: nos apoiando em argumentações vazias e sendo reativos aos movimentos que ocorrem na sociedade ou estamos buscando formas de construir a nossa legitimidade enquanto profissão, oferecendo recursos e ferramentas para a uma sociedade efetivamente mais democrática?
Reportagem originalmente publicada em objETHOS
Mariane Nava é doutoranda em Jornalismo no PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS