Mais um capítulo do caso da Boate Kiss, que já dura 10 anos e alguns meses. Essa história começou na madrugada de 27 de janeiro de 2013, quando a Kiss, lotada com mais de 1,2 mil jovens, estudantes das universidades de Santa Maria, pegou fogo, matando 242 pessoas e ferindo 636. Nesse novo capítulo, é real a possibilidade dos ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidirem favoravelmente ao recurso especial do Ministério Público gaúcho contra a anulação do júri que em dezembro de 2021 condenou quatro pessoas pelo incêndio. A anulação foi decidida pelos desembargadores da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (em agosto de 2022). Na tarde de terça-feira (13), o relator do processo, ministro Rogério Schietti Cruz, decidiu a favor do recurso. Outros dois ministros, Sebastião Reis Júnior e Antonio Saldanha Palheiro, pediram vistas – há matéria na internet. O processo todo tem mais de 68 mil páginas e o júri foi um dos mais longos da história do Estado, durou 10 dias e condenou os donos da Kiss, Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, a 22 anos e seis meses, e seu sócio, Mauro Londero Hoffmann, a 19 anos e seis meses, além dos músicos da banda Gurizada Fandangueira Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos a 19 anos. Todas as condenações deveriam ser cumpridas em regime fechado.
Não vou discutir os aspectos jurídicos do caso Kiss. Existe uma abundância de informações sobre o assunto disponível na internet. Incluindo livros, documentários e pesquisas feitas por universidades. Vou discutir a nossa responsabilidade de jornalistas daqui para a frente para manter essa história nas páginas dos jornais, sites e noticiários de rádio, TV e outras plataformas de comunicação, seja lá qual for o resultado do julgamento do recurso especial pelos ministros do STJ. Não é uma tarefa fácil cavar uma notícia. Mas é necessário, porque sinaliza para as autoridades que as redações não esqueceram o caso. Quem me chamou a atenção sobre a importância do noticiário diário para manter o assunto vivo foi o repórter Luiz Roese, falecido aos 45 anos em 2019. Quando o caso Kiss saiu das manchetes, migrando para o pé da página e depois desaparecendo dos jornais, Roese continuou cavando notícias sobre o assunto. Ele era o único jornalista brasileiro que sabia tudo o que acontecia no longo caminho que o processo sobre o incêndio percorria na Justiça. Sempre que conversávamos sobre qualquer assunto que fosse, lá no meio do papo ele lembrava alguma coisa sobre o caso que rendia uma notícia. Na madrugada do incêndio eu estava em férias. No meio da manhã do dia seguinte o meu celular tocou e fui avisado que as minhas férias tinham acabado e eu fazia parte da força-tarefa montada pelo jornal Zero Hora, de Porto Alegre, para a cobertura da tragédia. Durante as duas primeiras semanas depois do incêndio continuavam em Santa Maria jornalistas de todo o Brasil e de alguns países. Aos poucos foram desaparecendo, como é normal na cobertura dos grandes casos. Eu permaneci em Santa Maria por mais de um mês. Durante todo esse tempo convivi muito com os parentes das vítimas. Tive conversas com familiares que nunca mais vou esquecer. Lembro-me de uma frase que ouvi da mãe de uma das adolescentes mortas no incêndio: “Toda vez que abro a porta do quarto dela parece que vou encontrá-la”. Depois que fui embora de Santa Maria acabei me envolvendo com outros rolos no jornal. Sai da redação em 2014 e descobri que há coisas que ficam gravadas na cabeça do repórter e nunca mais saem de lá, como o caso Kiss. Não tem como esquecer.
Há uma questão sobre o caso Kiss que está ficando fora do debate. Antes de acontecer a tragédia a preocupação dos pais era com a segurança dos filhos adolescentes fora da boate. Não passava pela cabeça de ninguém que eles estivessem se divertindo dentro de uma ratoeira, como era a boate incendiada. O caso Kiss alertou para o perigo da falta de segurança nas casas de shows. Em decorrência da tragédia surgiram novas leis, normas e uma série de outros procedimentos visando aumentar a segurança desses estabelecimentos. Na medida em que a punição dos responsáveis pelo incêndio foi se transformando em uma novela de muitos capítulos, essas leis e medidas de segurança começaram a ser flexibilizadas – há várias matérias na internet. Não estou defendendo o atropelamento do andamento dos processos. Vou repetir o que defendo. A necessidade de nós jornalistas não deixarmos que o assunto desapareça do noticiário diário. Um dia desses, em uma palestra online para uma turma de estudantes de jornalismo, eu disse que não acredito no desaparecimento do jornalismo raiz, como muitos colegas e cientistas pregam. Por que não acredito? Por uma série de razões, mas vou citar a que considero a mais importante. A população sempre usou os noticiários como uma ferramenta para se fazer ouvir pelos governantes. Portanto, o veículo de comunicação que for relevante para o seu leitor tem boas chances de sobreviver. Para arrematar a nossa conversa. O caso da Boate Kiss é uma notícia globalizada. O que for decidido pelo STJ será uma notícia que vai dar a volta ao mundo em poucos segundos, porque é do interesse de todos. Antes de existirem as novas tecnologias de comunicação uma notícia, por mais globalizada que fosse, levavam dias, semanas e até meses para circular em todas as cidades importantes do planeta. Hoje é o tempo de apertar um botão no teclado. Essa rapidez é uma aliada do bom jornalismo, porque impede que fatos que jamais deveriam ser esquecidos sejam varridos para debaixo do tapete.
Reportagem publicada originalmente em Histórias Mal Contadas
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.