Chegamos ao cúmulo do absurdo. Faz-se necessária uma campanha de publicidade, mesmo que paga, mais uma vez, pelos cofres públicos, para informar a população brasileira sobre o que é, verdadeiramente, publicidade, publicitário e agência de publicidade. Porque, da forma como o ‘mundo da vida’ está recebendo e assimilando, pelos fatos que habitam o noticiário do dia-a-dia, publicidade é caixa 2 de governo; publicitário é marqueteiro ligado a caixa 2 de campanha; e agência de publicidade é caixa 2 da mentira, e não da verdade sobre temas de interesse público; é local de tramóias, maracutaias, desvios de recursos do contribuinte, ou, ainda, estância paradisíaca de onde saem malas de dinheiro para financiamento da compra de consciências e de votos, à base de ‘mensalões’ para quem virar aliado ou mudar de partido com finalidades inconfessáveis.
Do jeito que as coisas andam, perder-se-á junto ao senso comum o verdadeiro sentido de uma das idéias-chave dos sistemas democráticos, que é a da visibilidade da vida pública – ou seja, a própria razão de existir de um sistema de autofundação da sociedade, que é a democracia, que, por sua vez, não sobrevive se não houver res publica, isto é coisa pública, República.
E é com essa finalidade, de tornar visível o interesse público, que o Estado brasileiro tem gastado (pelo que se sabe do que vem a público) mais de 1 bilhão de reais por ano com publicidade – somando-se os orçamentos da administração direta federal e das empresas estatais).
Agora se sabe, publicamente, o que nos bastidores da política já era corrente e ninguém publicava: um publicitário, à frente de uma agência de publicidade, detentor de numerosas ‘contas’ de publicidade do governo, na realidade alimentava contas paralelas, contas bancárias suspeitas e desembolsos ilícitos, por meio das quais o dinheiro público jorrava.
Nesse ponto, o tal ‘jornalismo investigativo’ brasileiro dormiu, perdeu o faro em relação ao mau cheiro que exalava dos subterrâneos da política. Foi preciso, finalmente, que um repórter induzisse uma secretária ‘trair’ a confiança do chefe e deixasse vazar para o espaço público e para a esfera pública informações do tipo ‘uma colega ficava em Brasília, num hotel, contando dinheiro à exaustão, e um entra e sai de homens…’
Homens? Homens públicos ou pessoas autorizadas por eles. Que tipo de homens públicos são esses que agem, privadamente, às escondidas, às escusas, à socapa, à sorrelfa, de soslaio? E ainda arranjam os mais ridículos álibis para tentar despistar investigações em torno dos seus hábitos? Que tipo de publicidade, de publicitário e de agência de publicidade?
Trabalho de ‘publicitários’
É preciso que se produza um ‘esclarecimento’, conceito tão caro ao Iluminismo, uma vez que nem todo publicitário trai a sua profissão e o seu código de ética, que é o Código de Auto-Regulamentação Publicitária, um dos maiores êxitos de que se tem notícia em matéria de auto-regulação, graças ao zeloso Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar).
É preciso que se saiba – e se propague – que nem toda agência de publicidade aceita e propõe atividades inescrupulosas com a fachada de que detém ‘contas’ publicitárias de governo. Aliás, é preciso que se louve, há pelo menos um caso de publicitário e de agência de publicidade que não trabalha com governo: respectivamente, Washington Olivetto e W/Brasil. Agora, se sabe, por uma questão de princípio e não porque não seja digno fazer campanhas de candidatos, governos e órgãos públicos.
A enxurrada de denúncias que resultaram na renúncia de Fernando Collor de Mello teve início com algumas matérias, da Folha de S.Paulo, chamando atenção para o fato de que aquele novo governo já começava mal, em matéria de publicidade, contratando campanhas sem licitação pública – na verdade, para favorecer uma das agências que havia trabalhado em sua campanha eleitoral. Foi então que uma campanha já pronta para ser veiculada, e elaborada pela DPZ, foi cancelada para que a ‘conta’ passasse para a agência ligada ao gabinete do então presidente da República, que administrava as verbas de publicidade.
Naquela época, Collor designou Cláudio Vieira, uma das pessoas que lhe eram mais próximas, como forma de solucionar um conflito de interesse (pela função de manejar verbas de publicidade) que, ainda em tempos de campanha, causou uma rivalidade entre Cláudio Humberto, que viria a ser porta-voz da Presidência, e um dos irmãos de Collor. Não era o Pedro. Este, por sinal, veio a público denunciar o que a publicidade escamoteava, produzindo pérolas ufanistas (propaganda, e não publicidade) para convencer os brasileiros de que o Brasil saía da era das sucatas para o advento da modernidade.
Antes de Collor, no entanto, já havíamos assistido exemplos de deformações que surgem quando governos e ‘publicitários’ se unem para fazer propaganda. E nem é preciso retroceder a Joseph Goebbels e ao DIP, de Getúlio Vargas. Quem não se lembra das campanhas publicitárias do regime militar pós-64 e dos seus slogans? Desde a Constituição de 1988, é proibido veicular mensagens de autopromoção – seja de governantes, de autoridades e de funcionários públicos – com dinheiro público.
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A publicidade é necessária e não há mal nenhum que seja feita com dinheiro público, desde que para atender, de fato, o interesse público, a campanhas de fato públicas. O Brasil é um dos maiores exemplos mundiais de mobilização social usando a publicidade, graças, por exemplo, a campanhas como a do Zé Gotinha. Há quase duas décadas não se registra no país um único caso novo de poliomielite.
É preciso, portanto, recuperar o verdadeiro sentido da publicidade, que não pode ser confundida nem com propaganda de governos nem com caixa 2 de partidos nem com moeda de compra de aliados, via ‘mensalões’. Ou se produz esse re-esclarecimento ou nós, professores de cursos de Comunicação e, em particular, de Ética na Comunicação (disciplina que ministro da Universidade de Brasília) teremos a maior dificuldade de falar de ética na publicidade.
Neste momento, temo a chegada do próximo dia 8/8, quando retornarei às salas de aula, com o reinício do próximo período letivo na UnB. Temo que os alunos me vejam como uma figura ingênua; temo ouvir frases do tipo ‘professor, na prática a teoria é outra’. Ora, a ética é justamente o discurso teórico acerca de um discurso prático, que é a moral. Lamentavelmente, constato que as disciplinas de Ética, que considero entre as mais importantes, perdem de longe, em matéria de interesse dos alunos, para as chamadas ‘matérias práticas’.
Certa vez, quando era responsável pela disciplina Linguagem Publicitária, fui advertido por uma aluna, que se julgava falando em nome da turma: ‘Professor, nós já estamos no quinto semestre, então, por favor, fale-nos de coisas práticas’. Mas bastou um início de conversa para constatar que a turma sabia quase nada sobre língua, linguagem e discurso. E achava muito complicado ter de lidar com noções ‘complexas’ – por exemplo, a diferença entre signo e símbolo. ‘Ah! Professor, isso é teoreba.’
Mais recentemente, escutei de um aluno a desculpa esfarrapada para as suas constantes faltas, impontualidades e saídas para atender ligações por celular: ‘Professor, não se ofenda, mas ética não se aprende na escola’. Ora, por que um rapaz de 20 anos diz que ética não se aprende na escola mas, supostamente, na vida? Porque confunde ética com moral ou com deontologia. Pois ele faltou também à aula ‘teórica’ que tratou desses conceitos. Se ética não se aprende na faculdade (já deveria ter aprendido em casa e no ensino fundamental), vai aprender onde? E com quem?
Constato que os professores de Comunicação (há cerca de 700 cursos de Comunicação no país) vão ter de se redobrar para conseguir manter dentro das salas de aula alunos – não são todos, mas uma grande parcela – que não querem saber de ‘coisas teóricas’, já que ‘é no mercado que se aprende’.
Quanto à população, digo, quanto ao cidadão que paga impostos, de onde sai o dinheiro público que financia, entre outras tantas coisas, a publicidade de governo (a publicidade legal, a publicidade de utilidade pública, a publicidade institucional e a publicidade mercadológica das estatais), não me surpreenderá que alguma associação de classe venha de pronto patrocinar uma campanha para recompor a imagem dos publicitários, da publicidade e das agências de publicidade, ainda chamadas corriqueiramente de ‘agências de propaganda’, porque propagam idéias e valores, mas, agora, estão diante do paradoxo de que o público as vê como propagadoras de enganações.
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Jornalista, fez pesquisas sobre publicidade para obter os graus de mestre em Comunicação e doutor em Sociologia; leciona Ética na Comunicação na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB)