Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

O amante dos livros

Acadêmico e bibliófilo José Mindlin morreu às 8h de domingo (28/2), aos 95 anos, em São Paulo. Foi enterrado no mesmo dia no cemitério israelita da Vila Mariana. Mindlin deixa os filhos Betty, Diana, Sérgio, Marta e Sônia, netos e bisnetos.


José Ephim Mindlin nasceu em São Paulo em 8 de setembro de 1914. Formou-se em Direito em 1936, pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi redator do O Estado de S. Paulo de 1930 a 1934. Advogou até 1950, quando foi um dos fundadores e presidente da empresa Metal Leve S.A., empresa pioneira em pesquisa e desenvolvimento tecnológico próprio no seu campo de atuação. Em sua atividade empresarial desenvolveu grande esforço em prol do avanço tecnológico brasileiro e no processo de exportação de produtos manufaturados brasileiros.


Ocupava a cadeira 29 da Academia Brasileira de Letras – fundada por Artur Azevedo, que escolheu Martins Pena como patrono. Mindlin foi eleito em 20 de junho de 2006, na sucessão de Josué Montello, e recebido em 10 de outubro de 2006. [Com informações da Academia Brasileira de Letras]


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A generosidade do ‘livreiro-mor’


Lilia Moritz Schwarcz (*) # reproduzido do Estado de S.Paulo, 1/3/2010


Bibliotecas sempre deram muito o que falar. Grandes monarquias jamais deixaram de possuir as suas, e cuidavam delas, estrategicamente. Afinal, dotes de princesas foram negociados tendo livros como objetos de barganha; tratados diplomáticos versaram sobre essas coleções. Os monarcas portugueses, após o terremoto que dizimou Lisboa, se orgulhavam de, a despeito dos destroços, terem erguido uma grande biblioteca: a Real Livraria. D. José chamava-a de joia maior do tesouro real; isso nos tempos fartos do ouro que vinha do Brasil.


Já d. João VI, mesmo na correria da partida para o Brasil, não esqueceu dos livros. Em três diferentes levas, a Real Biblioteca aportou nos trópicos, e foi até mesmo tema de disputa. Nos tratados de independência de 1825, a Livraria constou como segundo item de uma extensa conta que o Brasil assumia, com o objetivo de conseguir a emancipação. Nas palavras de Pedro I, pagávamos por tradição e pelo prestígio que os livros trazem consigo. Livros carregam conhecimento, são símbolo de cultura, de liberdade e da verdadeira emancipação; que é, antes de mais nada, filosófica e espiritual.


Escrevo estas linhas sob impacto da morte de nosso ‘livreiro-mor’, o querido dr. José Mindlin – como todos o chamavam por intimidade, respeito e merecimento. Dr. Mindlin era o mais generoso e dadivoso dos ‘bibliotecários’.


Os transeuntes que resolvessem passar defronte de uma pacata rua no bairro paulistano do Brooklin, com certeza não teriam motivos para se deter diante de uma discreta casa murada. No entanto, para os mais privilegiados, a aventura mal começava. Era lá que dr. Mindlin mantinha seu mundo feito de livros; uma ilha perdida, um oásis da cultura.


A tudo e a todos


Após ter acesso ao interior da casa, o visitante cumpria um delicioso ritual, prontamente liderado por esse ‘bibliotecário’ especial. Era ele quem recebia à porta – sempre com seu sorriso farto. Era também ele quem levava o convidado até uma simpática sala; tomada por tapetes, quadros, e (claro) livros.


A primeira etapa do ritual era cumprida lá mesmo: entre um café e outro, ao lado da d. Guita – enquanto ela esteve presente –, dos filhos e netos orgulhosos, ou ainda da Cristina, sua fiel ajudante na biblioteca. Como num cerimonial, Mindlin abria um exemplar a esmo. Poderia ter nas mãos um romance do século 19, um incunábulo do 16, um original de Guimarães Rosa.


Nenhum livro era apenas um livro; era antes um objeto de estima, de reflexão, de amizade íntima. Contava como tinha obtido o livro em questão, narrava de maneira viva especificidades ou curiosidades, e só então fechava o exemplar, para seguir com outro.


Ultrapassada a fase do cafezinho, era chegada a grande hora: adentrar o espaço sagrado da biblioteca, a qual, reformada, enchia os olhos de nosso ‘livreiro’ do mais sincero orgulho. Ela era sagrada não porque intocável. O motivo era de outra ordem: a coleção significava o resumo de uma vida repleta da mais genuína dedicação aos livros.


Um simpático jardim separava a sala da biblioteca propriamente dita, como se fosse preciso passar por uma etapa para ganhar outra. Já na biblioteca, o tempo voava. Diferente de outros ‘livreiros’, que por costume, segurança ou medo não tentam facilitar o acesso aos livros, o dr. José ajudava a tudo e a todos. Não havia documento que não pudesse ser pesquisado; obra que estivesse impedida de ser consultada.


Diversão e leitura


Tal generosidade estava presente nos pequenos hábitos. Enquanto pôde (e mesmo quando, de fato, não podia mais), ele era sempre o primeiro na fila dos lançamentos. E chegava logo com 3 ou 4 exemplares: um para si, outro para a biblioteca, os outros… quem sabe.


O tempo é um senhor implacável do destino e nos tolheu da convivência com essa personagem que já era a cara de São Paulo. Uma Pauliceia com mais tempo, erudição, afeto.


Diante do inevitável, me veio à cabeça uma frase utilizada na Inglaterra e na França, imediatamente após a morte de seus reis. Em vez de ficarem com a tragédia, os súditos preferiam anunciar a perenidade, e em alto e bom som diziam: ‘Morto o rei, viva o rei.’


Vida longa dr. José Mindlin. Que os livros o acompanhem e garantam muita diversão e excelente leitura. Agora e sempre.


(*) Professora do Departamento de Antropologia da USP e autora, entre outros, de A longa viagem da biblioteca dos reis, pela Companhia das Letras


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Apaixonado pelos livros


Fabiane Leite # reproduzido do Estado de S.Paulo, 1/3/2010


O bibliófilo e empresário José Mindlin, de 95 anos, morreu na manhã de ontem, em São Paulo, vítima de falência múltipla dos órgãos, ocorrida após complicações cardíacas e pulmonares. Ele estava internado havia um mês para tratar uma pneumonia.


Responsável por organizar a maior e mais relevante biblioteca privada do País, doada em 2006 à Universidade de São Paulo (USP), o também fundador da Metal Leve e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) recebeu homenagens durante a tarde no velório realizado no Hospital Albert Einstein, na zona sul da capital paulista.


Durante a cerimônia, em que compareceram dezenas de pessoas, a contribuição à USP e outras importantes atuações, como decisões tomadas durante a ditadura, foram lembradas por amigos do mundo político. A família preferiu uma cerimônia reservada a parentes e amigos e não quis dar declarações durante a homenagem.


Por volta das 15h, pouco antes de o corpo deixar o local, parentes abraçavam-se enquanto ouviam-se cantos em hebraico. O caixão seguiu para o Cemitério Israelita da Vila Mariana, na zona sul, onde Mindlin foi enterrado no fim da tarde.


O governador José Serra (PSDB) decretou luto oficial de três dias em razão da morte.


‘Muita gente se refere a ele como bibliófilo, mas ele foi mais do que isso’, afirmou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) ao deixar o velório. ‘Foi um resistente ao regime autoritário, fui testemunha disso. Quando fomos postos fora da universidade, em 1969, e fizemos um centro de pesquisa para poder permanecer no Brasil, o Mindlin prestou apoio’, continuou. ‘Ele é muito mais que um bibliófilo. É uma pessoa preocupada com o futuro do País’, concluiu FHC.


Em nota, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lamentou a morte de Mindlin.


‘Ele foi um grande brasileiro e motivo de orgulho para todos nós. Com seu imenso amor à cultura, sua defesa da liberdade e sua conduta empresarial, prestou serviços extraordinários ao País. E, apesar da idade, ainda tinha força e disposição para contribuir com o progresso nacional’, afirmou o presidente na nota.


‘Foi uma grande figura como pessoa, intelectual e também, num certo momento, uma grande figura política, quando soube defender a liberdade de imprensa, a liberdade cultural. Um homem que sempre foi um democrata, uma grande figura de São Paulo’, disse José Serra, que foi ao velório acompanhado da primeira-dama, Mônica Serra.


Em nota oficial, Serra enfatizou ainda que, quando secretário Estadual da Cultura, nos anos 70, Mindlin convidou o jornalista Vladimir Herzog para a diretoria de Jornalismo da TV Cultura. ‘Sabe-se que os torturadores dos jornalistas presos procuravam, também, incriminar a Mindlin. E ele soube se comportar com altivez e dignidade diante das ações que levaram à morte de Herzog’, afirmou o governador.


O rabino Henry Sobel também lembrou da ditadura ao falar sobre Mindlin. ‘Naquela época sombria no Brasil, quando decidimos não enterrar (o jornalista) Vladimir Herzog como suicida, eu tive o apoio dele à minha decisão’, afirmou Sobel, um dos primeiros a chegar ao velório, em referência ao assassinato do jornalista pela ditadura militar.


‘Ele era um empresário fantástico, que estimulou a aprendizagem e teve sempre uma conduta exemplar’, completou o amigo José Pastore, professor titular da Faculdade de Economia e Administração da USP.


O senador Eduardo Suplicy (PT) também manifestou-se durante o velório sobre a importância do bibliófilo. ‘Foi um homem que ajudou o Brasil a ser um País melhor.’


Presente na homenagem, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (DEM), divulgou nota em que exaltou a doação dos livros de Mindlin à USP.


‘José Mindlin foi um gigante da cultura brasileira. Como todo grande homem, deixa um grande legado, que é a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin’, afirmou a nota.


O reitor da USP, João Grandino Rodas, reiterou, ao deixar a cerimônia, que o acervo em papel e digitalizado será abrigado em um dos prédios mais modernos e ‘imponentes’ da universidade. Os obras deverão estar disponíveis ao público já no próximo ano, quando está prevista a inauguração.


‘Ele era um empresário bem-sucedido, mas não viveu nunca como muitos desses empresários. Tinha uma casa confortável, mas simples. Ele e sua mulher viviam para juntar os livros e trabalhavam para sua conservação e digitalização’, afirmou o reitor. Rodas destacou ainda que ficarão acessíveis ao público obras como o primeiro exemplar de Os Lusíadas, de Camões, e mapas brasileiros raríssimos que foram colecionados pelo bibliófilo.


Ainda segundo Rodas, foram necessários 15 anos de ‘luta’ para que a USP recebesse os livros. ‘No Brasil, muitas instituições têm verdadeira ojeriza às doações privadas e ele foi pioneiro nisso.’


O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso enfatizou que foi necessária mudança legal para permitir a doação sem custos para donatários. ‘Foi um gesto importante porque, no Brasil, não temos a prática de doar’, complementou a ex-prefeita Marta Suplicy (PT).


ABL


‘Eu me sentia tão pequeno quando me encontrava na biblioteca do dr. Mindlin. Ele era um livro. A vida dele, a bondade, a delicadeza foram os principais capítulos do principal livro da biblioteca dele. O maior livro se chamava José Mindlin’, disse ainda o rabino Henry Sobel.


Em nota, o presidente da ABL, Marcos Vilaça, afirmou ontem que ‘Mindlin era um emblema do livro e tinha com ele uma relação orgânica’. Vilaça destacou ainda ter feito o convite para o bibliófilo ingressar na academia. ‘Vamos sentir muito a sua falta’, anotou.


Vilaça solicitou que a bandeira da ABL, com sede no Rio, fique a meio mastro, além de ter pedido luto de três dias.


‘Foi uma longa existência, de muitos amigos e muita respeitabilidade’, concluiu, ao deixar o velório, o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer, que atuou no governo Fernando Henrique Cardoso.


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Mindlin, um mecenas que não fazia nada sem alegria


Antonio Gonçalves Filho # reproduzido do Estado de S.Paulo, 1/3/2010


O ex-libris de José Mindlin, selo pessoal que o bibliófilo colocou em sua coleção de livros raros, não poderia identificar melhor quem foi o empresário, intelectual e acadêmico morto neste domingo, 28, em São Paulo, aos 95 anos, após prolongada doença: ‘Je ne fait rien sans gayeté’ (Não faço nada sem alegria). De fato, quem teve o privilégio de conhecer e conviver com Mindlin, sabe que caiu bem na vida do maior colecionador de livros do Brasil a escolha dessa máxima de Montaigne, retirada de seus Ensaios (do qual sua biblioteca tem um raríssimo exemplar, de 1588, que pertenceu ao crítico Saint-Beuve). Talvez a única coisa que fez sem alegria foi deixar este mundo sem ver concluído o prédio da Brasiliana USP, projeto acadêmico da Universidade de São Paulo que reúne a maior coleção de livros e documentos sobre o Brasil, um moderno edifício de 20 mil metros quadrados na Cidade Universitária sob a responsabilidade da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, órgão da Pró-reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP.


Sonho maior do bibliófilo, a coleção Brasiliana, composta por 17 mil títulos (ou 40 mil volumes) de literatura e manuscritos históricos doados pelo colecionador, é o maior legado deixado por Mindlin além da herança ética que o Brasil recebe desse empresário, jornalista, ex-secretário de Cultura de São Paulo e membro das academias Brasileira e Paulista de Letras. Desde adolescente avesso ao autoritarismo, Mindlin começou sua carreira jornalística aos 15 anos como redator do Estado, driblando a censura durante a Revolução de 1930. Da sala de Julio de Mesquita, então diretor do jornal, ele transmitia instruções para a sucursal do Rio – em inglês, para confundir a escuta telefônica. Outro exemplo de sua conduta ética foi o pedido de demissão do cargo de secretário de Cultura do governo Paulo Egydio quando o jornalista Vladimir Herzog foi morto pela ditadura militar, em outubro de 1975.


Posteriormente, ao ser convidado pelo governo civil de Fernando Collor para ocupar o cargo de ministro da Fazenda, Mindlin, traumatizado com cargos públicos, declinou da oferta, ocupando-se de sua biblioteca de 40 mil títulos, que manteve por mais de sete décadas com a ajuda de sua mulher Guita e, após a morte desta, em 2006, por mais quatro anos até ficar doente. Instalada em sua casa no Brooklin, na qual morou por mais de 60 anos, a biblioteca era o grande orgulho de Mindlin. Nela repousam raridades como a primeira edição de Os Lusíadas, de 1572, um original do padre Antonio Vieira, os originais de Sagarana, de Guimarães Rosa, corrigidos à mão pelo autor, além do primeiro livro que Mindlin comprou num sebo quando tinha 13 anos, Discurso sobre a História Universal, escrito em 1740 pelo bispo francês Jacob Bossuet. Oito décadas depois, outros 40 mil livros juntaram-se ao exemplar raro de Bossuet, muitos deles já disponíveis para consulta pública na Brasiliana Digital, a biblioteca virtual desenvolvida com o acervo físico doado pelo empresário à USP em 2006.


Mindlin não colecionava livros raros por fetiche. Queria dividir o prazer da leitura com milhares de pessoas. Mesmo como empresário, que transformou a Metal Leve de uma pequena fábrica de pistões, nos anos 1950, numa empresa gigantesca do setor de autopeças, Mindlin buscou o ideal de uma gestão democrática em que os operários pudessem ter voz ativa nas discussões sobre seu destino. Com a globalização, a Metal Leve não sobreviveu ao assédio do capital estrangeiro e, em 1996, foi comprada por sua maior concorrente, a alemã Mahle. O empresário, então com 82 anos, mais da metade dedicados à Metal Leve, não se aposentou, participando dos conselhos de administração de grupos – O Estado de S. Paulo, entre eles – ou de instituições como a Sociedade de Cultura Artística, da qual seu pai foi um dos fundadores.


Filho de um dentista judeu de origem russa, apaixonado por música e pintura, Mindlin herdou a paixão pela cultura do pai, que costumava receber em casa escritores como Mário de Andrade. Esse contato próximo com grandes estudiosos dos problemas brasileiros o transformou em farejador de raridades ao topar, ainda adolescente, em Paris, com o clássico História do Brasil, a narrativa de frei Vicente de Salvador, de 1627, que o fez se interessar pelo passado do País. Desde então, obcecado pela ideia de construir a maior biblioteca dedicada a estudos brasileiros, aproveitava todo tempo livre em sua viagens internacionais para garimpar títulos que nem a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro sonhou em ter no acervo. Seu sacrifício pessoal rendeu ótimos títulos publicados com a ajuda de sua biblioteca, entre eles os volumes da História da Vida Privada no Brasil, cujo conteúdo foi pesquisado na casa do Brooklin, frequentada pelos maiores intelectuais do País.


Mecenas, Mindlin, um dos articuladores da Fundação Vitae, que concedia bolsas para a realização de projetos culturais, ele publicou livros de grandes amigos poetas, como Carlos Drummond de Andrade, e artistas visuais como a gravadora Renina Katz. Seu acervo de obras em papel tem peças raras de artistas como Goeldi, Lescoschek, Lívio Abramo e Iberê Camargo. Mindlin costumava dizer que essa escolha se devia mais à mulher Guita, com quem teve 70 anos de vida em comum. Seu negócio mesmo era a leitura, hábito que, infelizmente, foi obrigado a abandonar nos últimos anos por problemas de saúde. Antes que seus olhos enfraquecessem, ele leu, porém, mais de cinco vezes sua obra preferida, os sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, da qual guardava uma raríssima primeira edição francesa. Depois de Proust, Balzac ocupou sua imaginação por mais tempo. Em sua inúmeras visitas ao órgão do Banco do Brasil responsável pelas importações, o empresário da Metal Leve, obrigado a longas horas de espera nos corredores, devorou quase toda A Comédia Humana.


Nascido em São Paulo, em 1914, Mindlin estudou Direito na USP e fez cursos de extensão universitária na Universidade Columbia, em Nova York. Aos 32 anos, financiado por um empresário, conseguiu um sócio e fundou a livraria Parthenon, em São Paulo, especializada em livros raros. A guerra havia acabado há um ano e famílias europeias descapitalizadas se desfaziam de seu patrimônio artístico e literário. Foi assim que Mindlin trouxe para o Brasil muitas raridades que colocou à venda na Parthenon, sempre avisando o comprador que poderia procurá-lo no futuro, caso quisesse se desfazer do livro. O conflito entre vendedor e colecionador cresceu com o tempo. Mindlin não resistiu e foi atrás de todos as obras raras vendidas, recomprando-as para sua biblioteca particular quando virou empresário.


Foi quando vendeu a Metal Leve, dirigida por durante 46 anos, que o empresário começou a pensar no futuro de sua biblioteca. Inspirado no modelo da John Cater Brown Library, de Providence (Rhode Island), que também começou como coleção particular e hoje é uma das maiores do mundo em documentos raros sobre a América, Mindlin, que integrava o conselho da biblioteca, pensou em fazer um acordo com a USP para transferir seu acervo. Parte dessa história está contada no livro Memórias Esparsas de uma Biblioteca, um dos três volumes que Mindlin dedicou à maior coleção privada do Brasil – os outros dois são Uma Vida entre Livros e Destaques da Biblioteca de Guita e José Mindlin.


Sempre procurado por pesquisadores brasileiros e estrangeiros atrás de suas raridades bibliográficas, Mindlin, um cidadão do mundo que dominava seis línguas, foi um dos primeiros empresários a atravessar a Cortina de Ferro durante a Guerra Fria, tentando aproximar o Brasil de países como a extinta União Soviética. Teve também um papel fundamental no processo de redemocratização do País ao assinar, durante a ditadura, um manifesto pela abertura política junto a outros oito empresários.


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Morre, aos 95, o bibliófilo José Mindlin


Ana Paula Sousa # reproduzido do Folha de S.Paulo, 1/3/2010


Os livros perderam, ontem, um de seus seguidores mais fiéis. José Mindlin, o empresário que atravessou a vida na companhia da leitura, morreu ontem, de falência múltipla de órgãos, no hospital Albert Einstein. Internado desde 9 de janeiro, o bibliófilo, que tinha 95 anos, passou os últimos dias sedado. Pouco antes de perder a consciência, em conversa com o neto Rodrigo Mindlin Loeb, quis saber como andavam as obras no prédio que abrigará a biblioteca Brasiliana, que doara para a USP.


‘Trata-se da concretização de um projeto de vida de difundir cultura e literatura para toda a população’, disse Loeb, no enterro, ocorrido no cemitério Israelita, no bairro da Vila Mariana. À cerimônia compareceram políticos como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o governador José Serra e a prefeita Marta Suplicy, e intelectuais, como Antonio Candido e o chanceler Celso Lafer.


É que, apesar de ter adquirido fama pública, sobretudo, por ter erguido uma das maiores bibliotecas privadas do mundo, Mindlin era uma dessas personalidades capazes de dividir-se entre diferentes gostos e atividades. Foi empresário de proa e personagem político.


Atuação pública


Um dos mais conhecidos episódios de sua vida pública deu-se nos anos da ditadura militar. Secretário de Cultura do Estado de São Paulo, recusou-se a demitir, da TV Cultura, o jornalista Vladimir Herzog, depois assassinado no DOI-Codi.


Mindlin não era homem de se curvar. Pediu demissão da presidência do Conselho de Orientação do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas), em 1997, por discordar da interferência do governo Mário Covas na eleição do Sebrae. Manteve o silêncio quando perdeu a eleição para a presidência do Masp, em 1994, para Júlio Neves. Tampouco costumava vangloriar-se.


Na obra de memórias Uma Vida entre Livros (Edusp/ Companhia das Letras), começa dizendo: ‘Este livro tem uma história que precisa ser contada, nem que seja para explicar e, se possível, justificar que eu fique tanto tempo falando de mim mesmo.’ Discreto, queria apenas falar de livros. Sobre a própria história, o que mais dizia era que, aos 13 anos, adquirira a primeira obra rara.


Filho de um dentista com fama de ser ‘o melhor de São Paulo’, cursou a faculdade de Direito do Largo São Francisco, mas teve carreira fugaz como advogado. Em 1950, participou, com a família, da fundação da Metal Leve, indústria de autopeças que, em 1996, foi vendida para um conglomerado.


Entre as atividades empresariais e a vida pública, Mindlin encaixava a sua obsessão. Com a mulher Guita, com quem casou-se em 1938, correu o mundo atrás de livros que desejava poder tocar. Comprou a primeira edição ilustrada do poeta italiano Francesco Petrarca, de 1488, as primeiras versões anotadas de Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, além de documentos, mapas, cartas, enfim, tudo o que era letra impressa.


Parte desse mundo terá como destino a biblioteca Brasiliana, na USP, composta por 17 mil títulos e 40 mil volumes, doada pela família em 1999. O prédio que abrigará o acervo está em obras e deve ser aberto dentro de pouco mais de um ano. ‘Nossa amargura é que o doutor José [Mindlin] não tenha visto a obra pronta’, diz Pedro Puntoni, coordenador do projeto. Alguns livros já podem ser vistos, em versão digitalizada, no site da Brasiliana.


Colecionador que era, antes de tudo, um leitor, Mindlin sempre manteve as portas de sua casa abertas para pesquisadores e estudantes. ‘Os livros são para serem lidos’, repetia. Costumava também dizer que ‘inocular o vírus [da leitura] é algo que procurou fazer a vida inteira, ‘ora com sucesso, ora sem resultado.’


Na cerimônia que antecedeu o enterro, ontem à tarde, o rabino Michel Schlesinger lembrou que Mindlin era bem-humorado, contava piadas e gostava de comer – principalmente sobremesas como chocolate e marzipã. Mas seu vício era outro. Nas memórias, o bibliófilo diz que, para seu próprio sossego, resolveu admitir que o que tinha era mesmo uma doença. ‘Mas uma doença que me fazia sentir bem, ao contrário das outras, e que, além do mais, era incurável.’ [Colaborou Luiza Fecarotta]


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Empresário dizia desconfiar dos livros de sucesso rápido


Reproduzido do Folha de S.Paulo, 1/3/2010


‘Indiscriminado e seletivo, glutão e refinado, ele é o tipo ideal de leitor, porque sabe que praticamente nenhuma leitura é perda de tempo se der prazer’, escreveu Antonio Candido.


Uma biblioteca que não se sentia só. Pois tinha, como razão de ser, a leitura.


‘Muito mais do que um colecionador, considero-me um leitor incansável e, o que é mais grave, um leitor indisciplinado.’


Comprar um livro de cada vez.


‘Existe sempre a ilusão de que se cai conseguir ler mais do que na realidade se consegue. Depois vem o desejo de ter à mão o maior número possível de obras de um autor de quem se gosta.’


Desconfiava dos livros de sucesso. Esses, só lia se sobrevivessem ao tempo.


‘Não gosto de livro difícil, a não ser excepcionalmente, e só com boas razões, como com Proust, Joyce e Guimarães Rosa.’


‘Além do conteúdo, edição, encardenação, diagramação, tipografia, ilustração, ou papel, o livro exerce sobre mim uma atração física. Não me satisfaz ver um livro numa vitrine, sem poder pegá-lo.’


‘Quando, depois de anos e anos de procura, encontra-se um livro raro, o coração bate mais forte. Sente-se uma emoção grande, mas não se pode deixar que ela transpareça diante do livreiro.’ (A.P.S.)


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O guardião dos livros


Reproduzido de O Globo, 1/3/2010


Um apaixonado pelos livros que em mais de 80 anos de incursões incansáveis por livrarias, sebos e leilões formou a maior e mais importante biblioteca particular do Brasil, com quase 40 mil títulos e raridades de valor inestimável, José Ephim Mindlin se tornou ele mesmo um tesouro nacional, simbolizando como ninguém o amor pela cultura. Cuidava de seus livros com zelo, mas não os guardava para si: doou quase a metade da sua coleção à Universidade de São Paulo (USP) e costumava fazer às pessoas que conhecia e aos muitos jornalistas que o entrevistavam um convite prosaico: ‘quando puder, venha conhecer a biblioteca’.


Mindlin nasceu em São Paulo, em 1914, filho dos imigrantes judeus russos Ephim Mindlin e Fanny Mindlin. Aos 15 anos, conseguiu seu primeiro emprego, como redator do jornal ‘O Estado de S.Paulo’.


Em 1930, ingressou na Faculdade de Direito da USP e, depois de formado, abriu um escritório de advocacia. Tornouse empresário ‘por obra do acaso’, como dizia. Contratado para cuidar de um contrato de sociedade, acabou se tornando sócio numa fábrica de pistões para motores de automóveis. Fundada em 1949, a Metal Leve se tornaria nas décadas seguintes uma das principais empresas do setor de autopeças no Brasil. Além de jornalista, colecionador, advogado e empresário, Mindlin também foi secretário estadual de Cultura de São Paulo na gestão de Paulo Egydio Martins (19751979). Na época, indicou para a direção do departamento de jornalismo da TV Cultura o jornalista Vladimir Herzog, preso e assassinado em 1975 pela ditadura militar. Em junho de 2006, Mindlin foi eleito para a cadeira 29 da Academia Brasileira de Letras (ABL).


O primeiro livro da coleção foi comprado por ele aos 13 anos de idade. Foi num sebo na região da Praça da Sé que o bibliófilo deu início ao que ele mesmo definia como uma ‘compulsão patológica’, com a compra de uma edição portuguesa, de 1740, do ‘Discurso sobre a História universal’, de Jacques Bossuet.


– Eu chamo essa compulsão patológica pelos livros de loucura mansa. Mas não sei como viveria nesse mundo se os livros não existissem – declarou ao Globo em 2006, quando foi escolhido pelo jornal como personalidade do ano no prêmio Faz Diferença.


A partir do primeiro volume, a coleção logo começou a ser expandida em visitas constantes a sebos de São Paulo, nas quais o bibliófilo se valia de uma estratégia comercial arrojada.


– Eu tinha 15 anos quando descobri que os livreiros da Sé praticamente não se falavam. Andando por lá, percebi que um livro de cinco mil réis num sebo era vendido por 50 mil réis em outro. E vice-versa. Pois bem, comprava um de cinco mil réis numa livraria, vendia por 50 na outra, mas, em vez de dinheiro, pegava créditos e trocava em livros. Fiz isso por uns dois anos, até que descobriram – contou na mesma ocasião.


A formação de sua brasiliana, com obras de literatura brasileira ou sobre o Brasil, também começou precocemente, quando ele ganhou de presente a edição de ‘História do Brasil’, de frei Vicente do Salvador.


Ao longo dos anos, ele adquiriu peças raras como as primeiras edições de ‘Marília de Dirceu’ (1810), de Thomaz Antonio Gonzaga; ‘A moreninha’ (1844), de Joaquim Manuel de Macedo; e ‘O guarani’ (1857), de José de Alencar. Também estão catalogados ali a obra completa de Machado de Assis, originais de ‘Vidas secas’, de Graciliano Ramos, além do manuscrito de ‘O quinze’, de Rachel de Queiroz, entre muitos outros.


Algumas aquisições exigiram esforço épico do colecionador. Entre elas, a da primeira edição de ‘O guarani’. Mindlin adquiriu dois dos quatro volumes do romance num sebo de Santiago, no Chile. Mas ter a obra completa era uma obsessão. Em 1977, soube que um livreiro grego oferecera a obra para alguns amigos por US$1 mil, no Rio de Janeiro, mas os amigos acharam caro, e o romance escapou. Anos depois, Mindlin soube que o livro seria leiloado em Londres. Para evitar contratempos, encaminhou uma ordem de compra sem limites a um livreiro inglês. O lance inicial seria de 20 libras esterlinas. Para seu desespero, assim que os lances chegaram a 60 libras, o livreiro desistiu da compra. Por fim, soube que o mesmo livreiro grego que oferecera a obra no Rio estava em Paris e queria vendê-la. Mindlin pegou um avião e seguiu para a França. Fechou o negócio por US$ 4 mil. Com o exemplar em mãos, Mindlin voltou para o Brasil pronto para pôr a obra na estante.


Mas, ao deixar o avião, já no táxi, percebeu que tinha esquecido o pacote na aeronave. Felizmente, a companhia aérea encontrou o livro dias depois e o devolveu.


Muitos dos livros da coleção de Mindlin trazem o seu ex-libris: ‘Je ne fay rien sans gayeté’, frase tirada dos ‘Ensaios’ de Michel de Montaigne que, em português, significa ‘Não faço nada sem alegria’.


Uma frase que explica o bom humor, a espontaneidade e a simpatia com que tratava funcionários e amigos.


São frequentes os livros com dedicatórias, como uma de Carlos Drummond de Andrade, de 1985: ‘Procuro no dicionário; falta rima para corpo; não é nada extraordinário; sua rima é outro corpo’.


Apesar do valor de seu acervo, Mindlin tomou uma atitude pouco comum entre colecionadores.


Após uma conversa com a mulher, Guita – que morreu em 2006, depois de um casamento de 68 anos –, e com os filhos, que abriram mão de incluir parte do acervo na herança, o empresário resolveu doar os títulos da brasiliana para a USP. A doação deu origem ao projeto Brasiliana USP, que já digitalizou vários títulos e dá acesso on-line a parte da coleção no endereço www.brasiliana.usp.br


Coordenador do projeto, que inclui a construção de um prédio numa área de 20 mil metros quadrados onde ficará também o acervo do Instituto de Estudos Brasileiros, o historiador István Jancsó diz que nenhuma universidade do mundo lusófono tem uma brasiliana comparável.


Mindlin guardava seu tesouro literário em prateleiras organizadas na sala da sua casa no bairro do Brooklin, em São Paulo, e em dois pavilhões construídos na área externa, além de estantes repletas de livros instaladas num apartamento de quatro cômodos e numa casa próxima à sua. São quase 50 mil volumes, que incluem ainda periódicos, mapas e revistas.


Além de colecioná-los, Mindlin também editou e escreveu livros. Em 2008, lançou ‘Cartas da biblioteca Guita e José Mindlin’ (Terceiro Nome), e no mesmo ano publicou um pequeno livro de memórias ilustrado, para crianças, chamado ‘Reinações de José Mindlin’ (Ática). Sua última obra foi ‘No mundo dos livros’ (Agir), sobre seus livros e escritores favoritos.


– Livro é para ser lido. A leitura compulsória pode ser inevitável, mas não cria o hábito. E comprar só para ter na estante também não tem sentido. Temos que comprar para ler – ele disse ao Globo em 2002.


Com um problema de visão que nos últimos anos o impedia de ler, Mindlin passou a recorrer à ajuda de outras pessoas, que liam os livros para ele.


José Mindlin morreu ontem [28/2], de pneumonia, aos 95 anos de idade, e foi enterrado no cemitério Israelita da Vila Mariana, em São Paulo. Deixa os filhos Betty, Diana, Sérgio, Marta e Sônia, netos e bisnetos.