Após superar longa tramitação na Câmara dos Deputados, onde foi aprovado em 23 de novembro de 2006, o Projeto de Lei nº 5003, originalmente proposto pela deputada Iara Bernardi (PT-SP) em 2001, chegou ao Senado Federal em 2006 sob a denominação de ‘Projeto de Lei da Câmara n. 122’, adiante referido como o PLC 122 e popularmente conhecido como o ‘projeto contra a homofobia’.
A pertinência do PLC 122 é evidente. Ele é apenas uma resposta do legislador ao que tem ocorrido, cada vez com maior gravidade, no seio da sociedade brasileira.
As associações representativas da população GLBT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais) e os meios de comunicação têm divulgado com freqüência inúmeros casos de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. A polícia e o Ministério Público também oferecem os mesmos relatos, muitos dos quais registram a prática de crimes de lesão corporal e homicídio.
Quando determinado tipo de comportamento preconceituoso se repete e se converte em um problema social de razoável dimensão, é hora de atuar no campo do Direito Penal: é preciso atribuir conseqüências mais severas e específicas para as condutas que o ordenamento jurídico pátrio já vedou por meio de dispositivos genéricos e abrangentes, e dotar o Estado do poder punitivo adequado para coibir as atitudes condenadas com veemência e clareza pela Constituição Federal.
Promoção e proteção do ser humano
Já no preâmbulo, a Carta Magna enuncia que o Estado Democrático brasileiro é instituído para assegurar o exercício de direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
No artigo 1º, o constituinte definiu como princípio fundamental da República a dignidade da pessoa humana (inciso III). No artigo 3º, elegeu como objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I) e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV).
No artigo 5º, caput, a Constituição Federal ainda estabelece:
‘Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…).’
Ora, uma sociedade pluralista e sem preconceitos, fundada na fraternidade, acolhe todo e qualquer ser humano, respeita as diferenças e estimula o convívio harmonioso.
A dignidade de pessoa humana, princípio orientador máximo de toda produção jurídica do campo do ‘Direito Internacional dos Direitos Humanos’ pelo menos desde o final da Segunda Guerra Mundial, há mais de 60 anos, hoje está presente em inúmeros textos constitucionais do mundo inteiro, e é responsável por localizar na promoção e na proteção do ser humano as razões principais da existência das normas jurídicas.
Ofensa à dignidade ou decoro
A sociedade livre que a Constituição nos obriga a erigir, como finalidade republicana, é aquela que não se deixa dominar por nenhuma forma de opressão, seja ela de que natureza for. Em uma sociedade verdadeiramente livre, não há o risco do caos ou da anarquia, pois o pacto válido é o posto pelo Direito, a única instância legítima e aceita por todos para regular a convivência no âmbito do território nacional: no ordenamento jurídico, há espaço garantido para a pacífica coexistência entre todas as correntes morais, filosóficas, culturais e religiosas que espelham a riqueza e a diversidade do pensamento humano, sem que uma imponha suas verdades particulares (e, em muitos casos, transitórias) sobre a outra.
Uma sociedade regida pela solidariedade é aquela orientada por vínculos de empatia e respeito de uns em relação aos outros.
Também só é possível promover o bem de todos em um ambiente em que não haja preconceitos e discriminações, já que tais condutas provocam danos graves à convivência coletiva, tumultuando a paz e criando situações ilegais de segregação social típicas das comunidades em que vigoraram regimes antijurídicos como o apartheid, filho mais longevo do regime colonial que definiu as relações entre os povos por tanto tempo.
Ainda sob exame dos senadores, o PLC 122, na forma do parecer da relatora da matéria na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, senadora Fátima Cleide (PT-RO), propõe ampliar, pela terceira vez, o alcance do artigo 140 do Código Penal, que define o crime de injúria, caracterizado como a ofensa à dignidade ou o decoro de alguém.
Tipos de discriminação condenados
A primeira ampliação do mencionado tipo penal ocorreu em 13 de maio de 1997, quando a Lei 9459 acrescentou ao artigo 140 o parágrafo terceiro, estabelecendo que quem se utilizasse de elementos de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional para injuriar, mereceria pena de um a três anos e multa. (Cabe lembrar que a mesma Lei 9459 também modificou a Lei 7716, a chamada ‘lei contra o racismo’, de 5 de janeiro de 1989, para incluir os elementos ‘etnia, religião ou procedência nacional’ como tipos de discriminação capazes de resultar em crimes.)
A segunda ampliação ocorreu em 1º de outubro de 2003, quando o Estatuto do Idoso (Lei 10741) deu nova redação ao parágrafo terceiro do artigo 140, para nele incluir a menção à condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência como outros elementos caracterizadores do crime de injúria na modalidade sujeita à pena mais alta.
A terceira ampliação, agora proposta, adiciona mais quatro elementos ao já conhecido parágrafo terceiro do artigo 140: gênero, sexo, orientação sexual e a identidade de gênero.
O PLC 122 também propõe a aplicação do inteiro teor da já citada Lei 7716 aos casos em que há preconceito em função da condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero, acrescentando-os à lista de tipos de discriminação por ela condenados. Isso requer a mudança na emenda e no artigo primeiro da citada lei.
O tipo penal da injúria
O projeto ainda sugere a criação de um parágrafo único para o artigo 8º da Lei 7716, que fica com a seguinte redação:
‘Impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares ou locais semelhantes abertos ao público.
Pena: reclusão de um a três anos.
Parágrafo único: Incide nas mesmas penas aquele que impedir ou restringir a expressão e a manifestação de afetividade em locais públicos ou privados abertos ao público de pessoas com as características previstas no art. 1º desta Lei, sendo estas expressões e manifestações permitidas às demais pessoas.’
O PLC 122, por fim, modifica o caput do artigo 20 da Lei 7716, que fica assim redigido:
‘Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero.
A pena continua a mesma: reclusão de um a três anos e multa.
Mais relevante na leitura do artigo 20 é o que estabelecem os seus parágrafos segundo, terceiro e quarto, cuja redação foi dada pela Lei 9459:
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência:
I – o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;
II – a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas.
§ 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido.
Nenhuma das providências tomadas pelo PLC 122 seria necessária se a Constituição e as leis brasileiras estivessem sendo respeitadas. O tipo penal da injúria, tal como concebido, sempre foi absolutamente suficiente para punir ofensas de qualquer natureza à dignidade ou decoro de alguém. Como, infelizmente, com o passar do tempo, tal previsão legal mostrou-se incapaz de inibir a ação de muitos, faz-se necessário instituir uma regra mais severa, que torne veemente e explícita a condenação ao preconceito contra orientação sexual e identidade de gênero, para ele estabelecendo uma pena mais elevada.
Não há argumento que permita o desrespeito
As modificações propostas ao texto da Lei 7716 possuem propósito semelhante.
Que fique claro: em nenhum momento, o PLC 122 impede ou restringe a liberdade de expressão, o que seria absolutamente inconstitucional. Pelo contrário, ele abomina a ação dos que pretendem impedi-la ou restringi-la, reiterando que a liberdade de expressão é benefício a ser desfrutado igualmente e na mesma medida por todos, inclusive para manifestar sua afetividade em público, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.
Também é preciso esclarecer que a redação proposta para o artigo 20 da Lei 7716 em nada macula o direito à liberdade de expressão. Ele só amplia a proibição, já vigente, da prática, da indução e do incitamento ao preconceito e à discriminação para proteger novas categorias. Naturalmente, se tais condutas são exercidas com o auxilio dos meios de comunicação, as penas serão mais severas, já que o poder de difusão da mensagem criminosa é maior e os danos, em conseqüência, mais graves.
O PLC 122, ademais, não tem a pretensão nem o poder de reprimir a manifestação, em tom civilizado, de qualquer idéia, filosofia, crença ou credo religioso que apresente, de forma respeitosa e elevada, suas considerações próprias sobre qualquer orientação sexual e identidade de gênero. Tal pensamento, entretanto, deve ser externado obedecendo-se aos valores e aos princípios definidos pela Carta Magna, aqui já largamente comentados.
Em seu artigo 5º, a Constituição Federal reafirma seu compromisso com a livre manifestação do pensamento e contra o anonimato (inciso IV), com a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença (inciso VI) e com a livre expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença (inciso IX). No entanto, todos esses direitos devem ser exercidos à luz do inciso X, do mesmo artigo, que considera invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.
Um Estado democrático como o brasileiro não pode tolerar comportamentos injuriosos, ofensivos, discriminatórios e preconceituosos. Não existe qualquer argumento válido dentro do Direito que permita o desrespeito contra um ser humano. Não há discurso de extração supostamente científica ou religiosa capaz de alterar essa verdade. O Brasil é dos brasileiros. De todos eles.
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Advogado, jornalista, mestre em Direito Internacional (UFMG) e doutorando pela Universidade Autônoma de Madri