O embate entre mídia e governo a respeito de possíveis atentados contra a liberdade de expressão orquestrados por este último não encontra eco na sociedade em geral, pois a imprensa, que deveria divulgar de forma clara as atitudes do poder, converteu-se em parte interessada. Sua apresentação do possível problema acabou obscurecida por seus anseios. O resultado foi a informação contaminada ou, em última instância, a desinformação.
Podemos até supor que haja algum traço de autoritarismo em algumas das propostas do PNDH, mas é impossível não imaginar que esse possível traço tenha sido reforçado em demasia pela cobertura jornalística. Na verdade, não precisamos supor coisa alguma. Basta ir direto ao texto do programa para esclarecer quaisquer dúvidas. Acontece que toda a cobertura sobre o assunto acabou soando como uma espécie de editorial compartilhado por todos os grandes veículos de comunicação, no qual a interpretação direta do texto foi substituída por uma ótica própria do meio. O que restou à população, no máximo, foram muitas dúvidas.
Vários textos, inclusive neste Observatório, procuraram demonstrar que a tal tentativa de cerceamento da liberdade de imprensa não passa de um conjunto de iniciativas de consolidação dos direitos humanos e de regulamentação de artigos constitucionais. Sob esta visão, algumas das manifestações daqueles que procuram defender a imprensa contra a suposta ameaça parecem distorcer um tanto o conteúdo das propostas governamentais.
A redução da violação dos direitos
Veja-se, por exemplo, o que disse Judith Brito, presidente da ANJ (Associação Nacional de Jornais), em texto publicado no jornal O Globo (reproduzido neste OI). Logo nos parágrafos introdutórios, Judith faz questão de ressaltar o que chama de ‘posturas autoritárias `chavistas´’ de alguns dos ‘grupos de apoio’ do presidente, entregando que o tom do texto deve manter o mesmo nível alarmista das diversas matérias sobre o assunto publicadas pelos grandes jornais. Em seguida, afirma que o Conselho Federal de Jornalismo não foi criado devido à ‘reação indignada da sociedade’.
Sabemos que isso não é verdade, pois esse tipo de debate não costuma seduzir a sociedade. No máximo, a reação indignada foi da imprensa, autoproclamada voz da sociedade. Uma população na qual a maioria das pessoas não possui o hábito de ler jornais e para a qual os programas informativos televisivos não estão entre os favoritos – o que, apesar de tudo, é lamentável –, não empregaria tempo e esforços nesse tipo de ação.
O texto é encerrado citando a proposta de ‘elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações’. Devo ser dono de uma mente extremamente autoritária, pois sempre que leio esta passagem do PNDH não percebo gravidade alguma. Muito pelo contrário. Afinal, trata-se de uma proposta que pretende destacar, no bom e no mau sentido, os veículos de comunicação, baseando-se em um parâmetro que não poderia ser melhor: o respeito aos direitos humanos. O objetivo claro é a redução da violação desses direitos. Não consigo imaginar uma ‘visão oficial’, como sugere a autora, sobre algo tão universal como os direitos humanos.
Liberdade de expressão sofreu mutilações
Quanto à cassação de concessões, é bom lembrar que as estas são públicas, devendo, portanto, atender a interesses sociais para que sejam mantidas. Os procedimentos de outorga e renovação das mesmas estão descritos na Constituição (artigo 223) e o texto do PNDH não menciona alterações nas regras, mas apenas sugere que se leve em conta o respeito aos direitos humanos, o que vai de encontro à necessidade de ‘respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família’ pela ‘programação das emissoras’ (artigo 221 da Constituição). É importante destacar que a suspensão de concessões é proposta como medida extrema, a ser empregada após a aplicação de várias outras penalidades administrativas. Na prática, sabemos que isso significa que o recurso, provavelmente, não chegaria a ser utilizado, mas serviria apenas como referência, a lembrar o compromisso social das concessões, declarado constitucionalmente. Pensar o contrário disso seria exagerar na comparação entre o Brasil e um certo país vizinho.
O deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ), no mesmo O Globo (reproduzido aqui), também exagera sobre um possível envolvimento da população no debate, ao afirmar que ela se mobilizaria ‘em favor da própria liberdade de expressão e de informação’. Exagera, primeiro, porque a sociedade não anda tão engajada, infelizmente; segundo, porque ela não se posicionaria automaticamente ao lado da imprensa; e terceiro e mais importante: tais liberdades não parecem estar ameaçadas.
A visão um tanto distorcida a que tivemos acesso nos últimos meses parece brotar das velhas confusões entre coisas que são diferentes: liberdade de imprensa e liberdade de expressão; controle e regulação; estatal e social. A ausência de distinção entre esses termos domina, por exemplo, um texto do jornalista Sandro Vaia, publicado no jornal O Estado de S. Paulo (ver aqui). De cara, o jornalista destaca um certo caráter controlador das ideologias esquerdistas, como se esse tipo de desvio coubesse unicamente à esquerda.
Sabemos que a radicalização domina uma parcela dos dois lados do espectro político, e que boa parte da direita, sem abandonar suas ideologias, não hesitaria em tentar controlar tudo o que pudesse caso encontrasse oportunidade ou julgasse necessário. Apenas alguns exemplos: a maioria das ditaduras militares sul-americanas ao longo da história e o recente comportamento do governo estadunidense após o 11 de Setembro, quando até a liberdade de expressão, tão exaltada naquele país, sofreu mutilações.
Participação de cidadãos mais ‘antenados’
Após esvaziar a definição da palavra ‘controle’, subtraindo-lhe o significado de ‘verificação administrativa, inspeção, fiscalização’ (Dicionário Online de Português do Brasil), Sandro sugere que as propostas apresentadas no programa da Secretaria de Direitos Humanos seriam apenas ‘palavras do mais puro malte petista’. Entretanto, não apresenta nenhum argumento que permita concluir que as propostas interessam apenas a um partido político específico.
O texto de Vaia traz ainda alguns pontos destacados ao final, sobre os quais farei os seguintes comentários, por considerar que os mesmos servirão como contraponto também a outros escritos:
** Toda a sociedade, incluindo as entidades que representam a mídia, pode, abertamente, participar do debate, e seria louvável que cada vez mais pessoas e entidades se envolvessem. O problema é que o próprio comportamento da grande mídia acaba por desestimular um maior envolvimento nesse sentido, restando a participação de alguns poucos cidadãos, digamos, mais ‘antenados’ em assuntos políticos.
** Apesar de propor iniciativas sociais de mediação e conciliação para resolução de conflitos, visando ao desafogamento do Judiciário, o que poderia ser muito positivo, o texto do PNDH, no que diz respeito a conflitos agrários, destaca a necessidade do envolvimento do Poder Judiciário (diretriz 17, objetivo VI, ação c), do Ministério Público, do poder público local, de órgãos públicos especializados e da Polícia Militar (ação d), e não de ‘organizações sociais’. Creio que isso não signifique o ‘abastardamento do Poder Judiciário’.
** A ‘Comissão da Verdade’ se propõe a apurar e esclarecer (e não ‘julgar’, como menciona Vaia) as ‘violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil no período fixado pelo artigo 8º. do ADCT da Constituição, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional’. Esta é a versão da proposta que ainda continha a palavra ‘repressão’, apenas para mostrar que não havia nada de mais. Ou será que começaremos a negar que a repressão ocorreu? Mesmo que o texto esteja se referindo a violações cometidas por apenas uma das partes, qual seja a dos agentes do Estado, esta é exatamente a tarefa que se espera desse Estado, pois estamos falando de uma espécie de reconhecimento público dos próprios atos, com vistas a contribuir com a parte que lhe cabe no preenchimento de uma lacuna histórica, mantida há um bom tempo pelo comportamento do próprio Estado. Sim, os tempos são outros, o governo é outro, mas o Estado não deixa de guardar o fantasma do que já foi, principalmente se não der o passo simples de revelar o que ‘ele mesmo sabe’ e que está escondido em documentos existentes, porém indisponíveis. Falar em um outro lado a ser ‘julgado’ (novamente: a intenção não é julgar) demonstra incompreensão do verdadeiro objetivo da proposta.
Os meios
É claro que a imprensa não deve abdicar, nunca, de seu papel de fiscalizar e denunciar os abusos do poder. Porém, a denúncia deve ser justa, isenta, o que implica, naturalmente, que será de interesse da sociedade, e não de determinados grupos.
É importante considerar que a mídia enquanto constituída por poderosas corporações munidas de grande penetração e influência sobre a sociedade, também deve ser fiscalizada, não pelo governo, mas pelo cidadão. O que o governo pode fazer é tornar disponíveis os canais e instrumentos que permitam esse acompanhamento, a fim de evitar os abusos que também existem do outro lado do embate: o lado da imprensa.
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Analista de sistemas, Uberlândia, MG