Erico Verissimo morreu em 1975. Tinha chegado à idade bíblica dos setenta e morreu cedo, mesmo para os padrões de expectativa de vida há trinta anos! Seu último romance foi Incidente em Antares (1971), que freqüentou muitas vezes as listas dos mais vendidos naquela década.
Quase 500 páginas, dependendo da edição, pois teve quase uma centena de relançamentos, é dividido em duas partes, a segunda um pouco mais longa do que a primeira, em que faz uma genealogia do poder das oligarquias rurais no Brasil, utilizando como quadro de referência o Rio Grande do Sul e como cenário preferencial dos eventos realistas e fantásticos a localidade de Antares.
Erico adorava ser simples até mesmo na carpintaria de seus romances. Dá às duas partes os nomes óbvios: a primeira, Antares; a segunda, Incidente.
O incidente, porém, quando chega a ocorrer vem como apanágio de um processo cujas tramas foram muito bem explicadas nas quase duzentas páginas que o prepararam.
Na segunda parte, ganha relevo a figura do jornalista Lucas Faia, que em prosa barroca, ainda forte nas centenas de jornais do interior, narra a ressurreição de um pequeno grupo de mortos notáveis que caminha para o centro de Antares, onde revelarão os podres de altas figuras do poder local, alguns dos quais com poder de vida e de morte sobre os munícipes, mas que nada mais podem fazer contra quem já morreu!
Eis amostra do estilo do jornalista:
‘Foi na última sexta-feira 13 deste cálido e, já agora, trágico dezembro. (…) A brônzea voz do sino da nossa Matriz chamava os fiéis para a missa das sete quando os sete mortos, em sinistra formatura, desceram sobre a cidade, ao longo da popular Rua Voluntários da Pátria, semeando o susto, o pavor, o pânico. (…) Uma senhora grávida, cujo nome a ética nos obriga a omitir, ao ver de sua janela a passagem dos sete defuntos ficou tão apavorada, que deu prematuramente à luz o seu bebê. (…) Com lágrimas a rolarem pelas faces alguns homens e mulheres, velhos inimigos, reconciliavam-se, esqueciam velhos e novos agravos, abraçavam-se, beijavam-se, enfim, faziam as pazes cristãmente. (…) Muitas pessoas encaminhavam-se para o confessionário, onde a presença do Pe. Gerôncio foi exigida, primeiro com calma e depois aos gritos’.
Era assim que Erico escrevia. Era assim que todos o entendiam. Ele tinha uma história para contar e sabia como fazê-lo. Os leitores queriam uma história para ler e a encontravam nos livros de Erico.
Entre os romances finalistas do Prêmio Jabuti, na edição deste ano (a Câmara Brasileira do Livro divulgou a lista no final da semana passada), nenhum passa sequer próximo desse estilo, mas alguns contam uma boa história, entre os quais O Opositor (Editora Objetiva), o do filho do escritor, pouco dado a narrativas longas e mestre de mestres em narrativas curtas como a crônica, Luis Fernando Verissimo, e Mare Nostrum, de Salim Miguel, feixe de histórias cruzadas equilibradas com talento e competência por este catarinense de 80 anos, que, à semelhança de Luis Fernando Verissimo, deve muito de sua ficção ao batente de jornalista.
Algumas estranhezas
Não merecia, porém, que a Folha de S.Paulo, ao noticiar que seu romance chegara às finais do Jabuti grafasse a expressão latina com que os romanos designavam o Mediterrâneo com um acento esquisito numa língua que não tem acento. E lá veio Maré (sic) Nostrum. Alguns erros são compreensíveis: omissão de acentos, por exemplo. Mas colocar acento numa língua como o latim, que não tem nenhum, ‘cousa é que admira e consterna’, como diria Machado de Assis. Aliás, o latim é terreno fértil para tropeços. Na mesma semana e no mesmo jornal, uma colunista elencou várias expressões latinas que ajudariam a situar o contexto das CPIs e conseguiu errar a cópia de várias expressões, palavras, sentenças e provérbios.
São outros tempos e muita coisa mudou em nossas letras e em nossa imprensa trinta anos depois de Erico Verissimo ter partido – quatro depois de ter publicado seu último romance, já que o volume 1 de Solo de Clarineta é livro de memórias. O crítico e professor universitário Flávio Loureiro Chaves organizou o segundo volume com a parte inconclusa e as anotações deixadas, já morto o romancista.
Entre as mudanças, algumas estranhezas. José Nêumanne Pinto com O Silêncio do Delator (Editora A Girafa), arrebatou um dos três maiores prêmios nacionais de romance (75 mil reais), o José Ermírio de Morais, concedido pela Academia Brasileira de Letras. Jornais e revistas deram pálidos registros do feito. E, surpresa desconcertante, o romance não está entre os finalistas do Jabuti. Faria boa figura ao lado de outros finalistas como Carlos Herculano Lopes, com O Vestido, autor também do excelente A dança dos cabelos, e Nélida Piñon, com Vozes do Deserto, que às vezes privilegia uma boa história para contar como em República dos Sonhos, mas que em outros livros prima por um estilo cujo forte é uma aventura de linguagem onde as tramas demoram a manifestar-se para o tipo de leitor que mantém a tríade indispensável autor-obra-público.
Partidário da conversa clara, esclareço que aprecio tudo o que Nélida Piñon escreve, aprendo muito lendo seus contos e romances, e gosto muito de alguns livros dela que tiveram poucos leitores.
Mais perplexidade
Ainda do Jabuti, que conforto ver nos indicados de poesia os livros de Neide Archanjo (Todas as Horas e Antes), Luís Pimentel (O calcanhar da memória) e Eucanaã Ferraz (Rua do Mundo). O mesmo se diga dos contos, que têm entre os finalistas Frei Betto (Típicos Tipos), Domingos Pellegrini Jr (Conversas de amor), Cintia Moscovitch (Arquitetura do Arco-íris) e, entre outros, Roniwalter Jatobá (Paragens). Todos são escritores de valor, o prêmio ficará bem com qualquer dos indicados.
É comum que prêmios suscitem controvérsias, que devem ser aceitas como decorrência normal da diversidade de critérios, respeitados naturalmente os limites éticos. Mas algumas omissões demandam maior análise. Por exemplo: se o relançamento do romance Guerra em Surdina, do professor Boris Schnaiderman, publicado há décadas, mereceu levá-lo a finalista do Jabuti, por que não está na categoria de biografias Morte no Paraíso, de Alberto Dines, que teve uma edição consideravelmente ampliada, lançada ano passado, ainda mais que Stefan Zweig veio para o proscênio num outro meio, o filme de Sylvio Back, Lost Zweig?
Por último, completemos o cenário com uma pitada de outro tipo de perplexidade. Entre os dez mais vendidos de ‘ficção’, num mercado editorial de cerca de três mil editoras, a Sextante aparece com quatro livros de Dan Brown e um de Mitch Albom. Entre os dez, dois brasileiros: Paulo Coelho (Rocco) e Jô Soares (Companhia das Letras). Conforta saber que lidera a lista Memória de minhas putas tristes (Record), do Prêmio Nobel Gabriel García Márquez. Os outros dois da lista são da Ediouro e da P. Brasil.
A banalidade vence
Jorge Amado e Erico Verissimo deram bons exemplos de como conciliar a arte de contar uma boa história com a arte do romance, que certamente é mais do que isso, mas infelizmente, das duas uma: ou não aprendemos suas lições ou as editoras não descobriram autores que saibam fazer isso.
O mais provável, porém, é que eles existam e a imprensa não os revele e proceda ao ocultamento de nomes e livros que começou a enterrar ainda nos anos 1980, sem tumbas ou cruzes que memorem seus feitos, pois nossos cadernos literários, em jornais e em revistas, empobreceram bastante nas duas últimas décadas. Mais uma pesada pá de cal foi lançada sobre os leitores. O Prosa & Verso, de O Globo, neste 2005, dispensou Affonso Romano de Sant’Ana e Wilson Martins!
Vivemos tempos muito preocupantes em nosso jornalismo literário. O afastamento desses dois intelectuais, dos mais completos que temos, aos quais o Brasil tanto deve, é sinal de que a banalidade está vencendo em vários arquipélagos de nossa imprensa.