Quem ama de verdade o castelhano tem que amar o português. Ambos se fertilizam, um ao outro, e mutuamente se acariciam e se elogiam… (Alfonso Reyes)
Alheio, ou pelo menos a uma prudente distância das trampolinagens de políticos e funcionários públicos, o mundo cultural-intelectual mexicano ficou, semana passada, antenado na divulgação de três dos mais prestigiosos prêmios literários do país, culminando, essa expectativa, com a grata surpresa da presença brasileira, em português de ótima cepa, nesse oceano hispânico que é a América Latina: o Prêmio Internacional Alfonso Reyes para o crítico e ensaísta Antonio Candido, que ele receberá, 8 de outubro, na Feira Internacional do Livro de Monterrey.
Os outros dois grandes galadornes, o Octavio Paz de Poesia e Ensaio e o de Literatura Latino-Americana e do Caribe Juan Rulfo, contemplaram, com tino e justiça, a mais fina poesia e ensaística em espanhol: o primeiro, para o poeta venezuelano Eugenio Montejo, o segundo para o também poeta e ensaísta mexicano, nascido na Espanha, Tomás Segovia. Os três prêmios, a propósito, bem forrados de verdinhas, oscilam entre 60 e 100 mil dólares.
Embora a vasta e rica contribuição do intelectual paulista, de 87 anos, seja ressaltada com o devido respeito e carinho pelo Instituto Nacional de Belas Artes (INBA) – ‘uma das figuras centrais do panorama cultural que construiu o século 20 brasileiro’, a relevância do prêmio concedido a Antonio Candido vai muito além dos discursos e homenagens no México, onde é conhecido e reconhecido pela comunidade acadêmica há pelo menos quarenta anos.
Na verdade, o prêmio reforça, graças a uma obra crítica sólida e transcedente, hoje traduzida em 20 países, a chegada ao resto da América Latina, num movimento lento mas firme, da melhor cultura brasileira, língua e literatura incluídas, apesar dos eventuais reducionismos e limitações tradutórias e as inevitáveis exigências do mercado editorial moderno, vergado sob o peso avassalador da máquina dos best sellers.
Assim, é difícil, quase impossível bater os níveis de venda de Paulo Coelho, fartamente exposto nas mesas de novidades das melhores livrarias da Cidade do México (Gandhi, Parnaso, Fondo de Cultura Económica, El Sótano). Rubem Fonseca, venerado por leitores fanáticos, vende decentemente, mas não passa dos 3 mil exemplares.
Com esforço e paciência, os interessados encontram nas estantes livros de Nélida Piñon, João Ubaldo Ribeiro, Moacyr Scliar, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, em boas edições espanholas. A poesia brasileira também circula modestamente, porém traduzida com competência por poetas mexicanos.
A obra de Candido tem sido pouco traduzida no México, mas o prestígio do prêmio já incentiva duas grandes editoras, a da Universidad Autónoma de México (UNAM) e a tradicional Siglo XXI, a editar ou reeditar agora alguns de seus títulos clássicos, caso de Iniciação à Literatura Brasileira e Literatura e Sociedade.
Em anos passados, Haroldo de Campos ganhou o Prêmio Octavio Paz de Poesia, Rubem Fonseca e Nélida Piñón, o de Literatura Juan Rulfo. Pode parecer pouco em termos numéricos, mas aqui o que conta é a mais alta qualidade literária. Aberto o caminho a duras penas, vencendo em parte a complexa barreira do idioma, outros escritores e poetas brasileiros poderão, num futuro próximo, circular mais no México e vizinhanças.
A nobre herança alfonsina
Outro aspecto não menos gratificante nessa premiação do professor Antonio Candido, sobretudo no contexto das relações culturais entre Brasil e México – atualmente mais diversificadas, com óbvia vantagem para os mexicanos, herdeiros e praticantes respeitosos de uma cultura e arte deslumbrantes – é a própria origem do prêmio, homenagem a um dos mais brilhantes e completos intelectuais do país, o escritor, ensaísta, lingüista e poeta don Alfonso Reyes, mestre sereno e cálido de várias gerações.
Diplomata de carreira, foi embaixador no Rio de Janeiro entre 1930 e 1936, sob a ditadura getulista, quando atreveu-se a acolher, no casarão de sua saudosa e bucólica rua das Laranjeiras, fronteira com o Cosme Velho, a vários inimigos do regime, correndo riscos inimagináveis. Felizmente não mexeram com ele e Getúlio Vargas, depois disso, até chegou a recebê-lo no Palácio do Catete. Sem maiores paparicos, é verdade, conversa rápida e formal.
Muito mais que essa coragem pessoal, don Alfonso, então batendo nos 40 anos de idade, vindo angustiado da Argentina, onde deixara bons amigos e dívidas pessoais consideráveis, motivo de muitas noites insones, acabou aliviando seus pesares no amor apaixonado pela cultura brasileira, convertendo-se num hábil conhecedor das diferenças sutis, algumas até cômicas, entre o nosso português e o chamado lusitano, bem como as armadilhas escondidas nos tais ‘parecidos’ do português e do espanhol.
Num ensaio precioso, ‘Aduana lingüística’, escrito em seu estilo belo e transparente, clássico e ao mesmo tempo altamente legível, ele, também requintado humanista e helenista, se diverte explicando os matizes entre o nosso singelo advérbio ‘apenas’ e o ‘apenas’, apenitas dos mexicanos, usado no cotidiano com várias conotações. Ou os cuidados que devem ser tomados na leitura e entendimento dos vocábulos ‘facto’ e ‘fato’.
Aposentado, meio doente, voltou ao México mas jamais esqueceu dos amigos, o poeta Manoel Bandeira entre eles, da comida, da música, da poesia e literatura brasileiras. Possuidor de um espírito epicurista e sensual que cultivava ávido, sempre manteve nas retinas, lembrava aos amigos mexicanos, a graça e beleza das cariocas. Converteu-se num autêntico brasilianista, deixando vários ensaios ternos e perceptivos sobre o Brasil e sua gente, espalhados em sua vasta obra reeditada em 20 e poucos tomos pelo Fondo de Cultura Económica.
Poesia e ideologia
Como a boa escritura naturalmente se nutre da leitura dos grandes do ofício, os dois poetas e ensaístas também premiados, o venezuelano Montejo e o mexicano Segovia, não escondem as influências sofridas, e absorvidas, em seus processos criativos.
Para os 31 poetas hispano-americanos, integrantes do júri do Prêmio Octavio Paz, conferido pela associação presidida pela viúva do poeta, Marie Jo Paz, a poesia de Eugenio Montejo, 67 anos, ‘nestes tempos quando tudo conspira para aumentar a desarmonia do mundo, nos lembra que é preciso voltar aos deuses profundos e que a música do ser é dissonante mas a vida continua’.
De Juan Rulfo, uma de suas grandes influências, Tomás Segovia afirma, com a serenidade dos seus 78 anos, que foi ‘um escritor peculiar, que tinha o puro dom da escritura, um narrador misterioso… Em outros escritores é possível rastrear o trabalho, a influência ou a biografia, mas em Rulfo não. Não foi um grande estudioso ou conhecedor, mas nasceu com o dom’.
Ainda sobre prêmios literários importantes da América Latina, vale, por corajoso, o registro do protesto do respeitado crítico mexicano Christopher Domínguez Michael, em sua coluna no suplemento literário dominical ‘El Angel’ do jornal Reforma, em relação ao XIV Prêmio Internacional de Novela Rómulo Gallegos, do governo venezuelano, este ano dado ao escritor local Isaac Rosa, autor da novela En Vano Ayer.
Sob o nada estimulante título ‘O fim de um prêmio literário’, Domínguez Michael acusa o escritor de, além de literariamente medíocre, não passar de um pobre escrivinhador de província a serviço da propaganda ideológica do regime castrista, ‘modelo, aliás, do atual militarismo chavista’. Escreve o crítico: ‘Em Havana e em Caracas se fizeram as diligências necessárias para que o prêmio não voltasse a honrar a um escritor independente, ao contrário, que tudo ficasse atado, amarrado, premiando a servidão’. (Os premiados anteriores incluem o peruano Mario Vargas Llosa e o mexicano Carlos Fuentes, entre outros.)
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Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México