O sargento reformado da Polícia Militar do Rio de Janeiro Edimilson Oliveira da Silva, o Macalé, sabia quem é o mandante da execução da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco (PSOL). Foi ele que levou o pedido para Ronnie Lessa, que a matou na noite de 14 de março de 2018. Na hora da execução, Lessa fez os disparos do banco traseiro de um carro (Chevrolet Cobalt ) dirigido pelo seu compadre e colega de milícia Élcio Queiroz. Além da vereadora foi morto o seu motorista, Anderson Gomes, e ferida uma das suas assessoras. Portanto, Macalé sabia quem mandou matar Marielle. Ele foi executado em novembro de 2021 por dois homens que desceram de um carro branco, quando caminhava pela Avenida Santa Cruz, em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Na época, a imprensa noticiou que se tratava de uma queima de arquivo. Essa história foi contada na delação premiada homologada por Queiroz no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, na segunda-feira (24/07). A Polícia Federal (PF) está ajudando nas investigações. O caso vem sendo acompanhado passo a passo pela imprensa com riqueza de detalhes, como diziam os jornalistas nos tempos das máquinas de escrever nas redações.
A minha proposta é conversamos sobre outro detalhe desse caso que, no meu entender, é merecedor da nossa atenção: a queima de arquivo. Antes um aviso que considero importante. Tomei a liberdade de usar no título a expressão “autópsia nas redes sociais” no mesmo sentido da que é feita pelo médico legista em um cadáver. No caso das redes sociais esse trabalho é feito pelos peritos policiais. Vamos a nossa conversa. Não sei se foram os roteiristas dos filmes de Hollywood ou os repórteres que fazem cobertura de assuntos policiais, o fato é que usamos nas nossas matérias a expressão “queima de arquivo” como sinônimo de uma pessoa que sabia tudo sobre um crime e foi morta para levar o seu segredo para o túmulo. Isso significa que o crime tem grandes chances de ir para a prateleira dos casos não resolvidos das delegacias de polícia. Por muitos anos foi assim. Descobri que as coisas mudaram nos últimos 25 anos. Vou contar como fiz a descoberta. Trabalhei em redação como repórter investigativo de 1983 a 2014. Os anos 80 e 90 foram tempos de abundância de pessoal e dinheiro nos jornais. O que permitia que eu pegasse um assunto e ficasse apurando as informações por semanas, meses e, em alguns casos excepcionais, até um ano ou mais. No intervalo entre uma reportagem e outra, ficava procurando pautas curiosas para quebrar a rotina de sempre estar envolvido em matérias complicadas. Não lembro com exatidão a data. Mas foi logo no final dos anos 90, quando a internet começava a fazer parte das nossas vidas a todo vapor. Durante uma conversa com professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) surgiu o assunto sobre o que acontecia depois da nossa morte com a nossa existência burocrática, ou seja, os documentos como Carteira Nacional de Habilitação (CNH), conta bancária, Imposto de Renda (IR) e outros papéis. Acreditava que, ao emitir o atestado de óbito, que é um documento oficial, os governos federal, estadual e municipal automaticamente cancelavam a vida burocrática do falecido. Estava enganado. Não é bem assim. De posse do atestado de óbito, a família precisa bater em um montão de portas para fazer o cancelamento. Na ocasião, encontrei casos de pessoas que haviam morrido e continuavam existindo nos registros oficiais. Essa situação se ampliou com a popularização da internet e o avanço das novas tecnologias nos telefones celulares, nos aplicativos (WhatsApp, Facebook, Instagram e outros) e, mais recentemente, com a inteligência artificial (AI). Portanto, nos dias atuais, após a morte física, a pessoa continua existindo não apenas nos vários registros oficiais, mas também nas suas redes sociais. Consequentemente, suas mensagens (textos, áudios e vídeos) enviadas e recebidas continuam circulando por aí por anos a fio. Incluindo informações registradas nas torres dos celulares e nas câmeras de segurança públicas e privadas.
O que significa isso? Simples. A morte física, é claro, evita o testemunho presencial, que é muito importante. Mas se uma pessoa que foi vítima de uma queima de arquivo deixou a sua história nas redes sociais, existe a possibilidade real dela ser encontrada pela investigação policial. Vamos ao caso do Macalé. Ele levou ao miliciano Lessa a ordem para matar a vereadora. Foi a execução dele, em 2021, descrita pela imprensa como queima de arquivo, a responsável por persistir, até os dias de hoje (julho de 2023), a pergunta sobre quem mandou matar Marielle? Não foi. A investigação policial foi prejudicada nos últimos cinco anos pela falta de empenho em resolver o caso dos governos estadual (Rio de Janeiro) e federal, do ex-presidente Jair Bolsonaro. Todos sabem que existe a possibilidade real de que Macalé tenha deixado registrado nas suas redes sociais o nome do mandante da morte de Marielle. Não é por outro motivo que os agentes da PF estão vasculhando essas redes sociais em busca de informações. Atualmente, muito embora a expressão queima de arquivo continue sendo usada para chamar a atenção do leitor e facilitar a vida do repórter e do editor para descrever uma situação e fazer os títulos das reportagens, elas não são mais sinônimo de caso insolúvel. Nós jornalistas precisamos repensar o uso dessas palavras. Creio que, no mínimo, se acrescentássemos a história das redes sociais, já estaríamos ajudando o leitor a entender melhor o caso.
Lembro os meus colegas que nos dias atuais o jornalismo vem sendo vítima das fábricas de fake news. Portanto, quanto mais exatas forem as nossas matérias, melhor para todo mundo. Tenho dito nas conversas com estudantes de jornalismo e repórteres dos jornais do interior do Brasil que as novas tecnologias de comunicação vieram para ajudar a investigação policial e a jornalística. Colocando à disposição do investigador um volume considerável de informações espalhadas pelas redes sociais. Nos tempos das máquinas de escrever nas redações, os editores diriam que essas informações vêm do além-túmulo. Hoje, falam que são dados guardados na nuvem, que em computação significa o armazenamento de informações em diferentes provedores na internet. Fechando a nossa conversa. Precisamos ficar atentos à história que conta a autópsia do corpo da vítima da queima de arquivo. E também à história contata pela autópsia da rede social do morto.
Artigo originalmente publicado em “Histórias Mal Contadas”.
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.