Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Pautas jornalísticas e a grande perplexidade

Não foi pequena a perplexidade causada no meio jornalístico – evidenciada em notas do Sindicato de Jornalistas Profissionais do Município, da Associação Brasileira de Imprensa e da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo – diante do processo movido na Justiça carioca contra o jornalista Ancelmo Gois. E não é para menos: o colunista limitou-se a divulgar o resultado de uma ação que corria em segredo (indevido) entre um desembargador e uma juíza e foi por isso denunciado segundo o artigo 228, inciso 9, do Estatuto do Servidor Público, que prevê pena de até seis anos de prisão. A perplexidade aumenta com a incongruência jurídica da denúncia, já que Ancelmo não é funcionário público.

Tudo isso já se sabe por meio da imprensa e deste mesmo Observatório que, em sua última edição, tratou do assunto [veja remissão abaixo]. O que talvez não se conheça devidamente é a medida da freqüência dessas ditas ‘incongruências’ no meio judiciário, que podem se revelar como sintoma de um problema de fechamento corporativo.

O pequeno relato de um outro caso, não relacionado ao exercício da atividade jornalística, é aqui oportuno. Há algum tempo, milhares de funcionários públicos vêm obtendo da Justiça sentenças que obrigam a Caixa Econômica Federal a devolver-lhes, com correção monetária, os resíduos financeiros do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) correspondentes à diferença ‘esquecida’ por um desses famigerados planos de governos passados.

Na verdade, não deveria haver o que se discutir, já que se trata do direito líquido e certo de cada um: é seu próprio dinheiro entesourado e escamoteado. Como houve resistência, a Justiça decidiu corretamente em favor dos sujeitos de direitos, embora não com validade para todos os casos, já que as ações foram parceladas, com advogados e varas diferentes.

‘Sonhos da razão’

Em matéria de direitos, as coisas não são tão simples quanto possam parecer. Assim, um dos últimos lotes de funcionários, depois de ganhar sentença favorável de um juiz, viu-se barrado pela decisão de um luminar do Tribunal de Recursos, que argumentou: a Caixa não deveria pagar, porque isto seria um ‘rombo’ nas finanças públicas.

Ao que se sabe, essa pérola argumentativa já foi ultrapassada por outra decisão mais sensata, mas resta o absurdo de sua formulação, expresso na incongruência da idéia de ‘rombo’. Tratava-se realmente do pequeno dinheiro de cada um, outros já tiveram seus direitos reconhecidos, mas alguém raciocina financeiramente, para além dos critérios da lei e da justiça, em favor de um banco.

O interesse crítico deste caso é aumentado com a evidência de que ele jamais conseguiria interessar à pauta jornalística. É um assunto sem qualquer daquelas características que preenchem os requisitos para que um fato se torne notícia. No entanto, é não só um exemplo do relativismo das decisões judiciais, mas principalmente um sintoma de que esse aparelho de Estado, corporativamente fechado em sua autonomia, acaba produzindo aquilo que Francisco Goya (1746-1828), o grande pintor espanhol, chamou de ‘sonhos da razão’ – ou seja, monstros.

Pauta esquecida

A imprensa só se mostra atenta ao fenômeno quando é diretamente atingida ou então quando se trata de uma sentença tão incongruente que beira o fait divers, isto é, a matéria do sensacional jornalístico.

Um exemplo de dias atrás: a imprensa noticiou a sentença de um magistrado que reduziu o valor da indenização obtida numa ação contra a Prefeitura do Rio por erro médico irreparável contra uma criança, que teve um braço amputado. A sentença argumentava, entre outras coisas, que não se justificava ação de danos morais em favor da criança, já que esta, ao longo de seu crescimento, acabará adaptando-se psíquica e moralmente à condição de maneta.

Não cabe ao observador da imprensa especular sobre preparo jurídico, formação cívico-humanista ou quaisquer outros atributos pessoais dos membros da magistratura. Mas cabe-lhe chamar a atenção para o fenômeno da incongruência argumentativa das sentenças, que pode se manifestar em impropriedades jurídicas ou em claras tentativas de tornar absolutamente opacos os processos de decisão. E lhe cabe principalmente porque são cada vez mais claros os sinais de que as garantias constitucionais de liberdade de expressão e de informação estão sendo contornadas aqui e ali por decisões judiciais isoladas. O corporativismo, seja de que nível profissional for, costuma ser inimigo da transparência e, conseqüentemente, da democracia.

Cabe mais do que nunca à imprensa a vigilância constante sobre fenômenos dessa ordem, em geral ausentes das pautas dos jornais. E talvez seja oportuno que se volte a perguntar publicamente sobre reforma do Poder Judiciário, agora aparentemente esquecida.

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Jornalista, escritor, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro