A investigação jornalística tem deixado muito a desejar na cobertura da execução da vereadora Marielle Franco (PSOL), do Rio de Janeiro. Ela foi morta na noite de 14 de março de 2018 por rajadas de metralhadora disparadas contra o seu veículo pelo miliciano Ronnie Lessa, que estava sentando no banco traseiro de um Chevrolet Cobalt. No atentado, morreu também o motorista da parlamentar, Anderson Gomes, e ficou ferida uma das suas assessoras. Lessa e outros envolvidos no crime estão presos. Falta a investigação policial descobrir quem mandou matar Marielle? A recente parceria entre a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro em busca do mandante da execução tem trazido evoluções importantes investigação – há matérias na internet.
Uma das evoluções trazidas na investigação aponta para o lado das milícias, que são grupos formados por policiais da ativa e aposentados fora da lei que operam em várias favelas cariocas. É preciso explicar melhor essa história das milícias e outras organizações criminosas que atuam no Rio para os leitores e os jovens repórteres que trabalham nos noticiários do dia a dia. O Rio de Janeiro é o berço do crime organizado no Brasil, que nasceu com os bicheiros – há sobre o assunto livros, trabalhos de pesquisa e muitas reportagens disponíveis na internet. Por muitos anos, os donos das bancas de bicho deram as cartas no Rio. As milícias nasceram nos anos 60, quando os comerciantes contratavam policiais da ativa e aposentados como segurança de suas lojas. A facção Comando Vermelho (CV) nasceu em 1979, no presídio da Ilha Grande. Essas três organizações criminosas têm as suas diferenças e disputas por territórios decididas a rajadas de metralhadoras. Mas também fazem alianças para defender interesses comuns, principalmente em negócios como a construção de prédios clandestinos e a prestação ilegal de serviços de internet (popularmente conhecida como “netgato”), transporte coletivo, comércio de gás, drogas e armas. E têm negócios legais montados para lavar dinheiro. E o que considero muito importante. Ao contrário de outras organizações criminosas espalhadas pelo Brasil, as do Rio têm um braço político que foi montado pelos banqueiros do jogo do bicho e nos dias atuais é compartilhado com outras quadrilhas. Vou lembrar uma história que sintetiza o que falei. Adriano Magalhães Nóbrega, ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope), aquele do filme Tropa de Elite, foi expulso da Polícia Militar do Rio de Janeiro por estar envolvido na prestação de serviços de segurança para os banqueiros do bicho. Ele tornou-se miliciano e criou o Escritório do Crime, que aceitava a encomenda de execuções. Em agosto de 2020, morreu em um tiroteio com policiais no interior da Bahia. O miliciano era amigo da família Bolsonaro – há matérias na internet. Nos últimos quatro anos, falei por diversas vezes sobre o assunto nos meus posts, vou citar o mais recente: Todos os homens perigosos do presidente Bolsonaro, publicado em dezembro de 2022.
Somando todas as informações conhecidas até agora da investigação policial que busca encontrar os mandantes da morte de Marielle, a conclusão é existe a possibilidade real de que a vereadora tenha sido executada por ter contrariado os interesses de algum negócio ilegal que reunia as organizações criminosas do Rio. Para avançar mais nesse terreno é necessário ter trabalho jornalístico em campo. Por que faço essa afirmação? As quatro décadas que atuo com jornalismo investigativo me ensinaram que sempre que os investigadores policiais estão lidando com um trabalhado da envergadura do caso Marielle eles usam os jornalistas para espalhar “balões de ensaio”. Como acontece? Os suspeitos são todos grampeados – escutas telefônicas autorizadas pela Justiça. Os policiais contam então uma historinha para o repórter, que a publica, e ficam monitorando a troca de mensagens e as conversas por telefone e outros aplicativos a respeito da reportagem. É do jogo. Mas é sempre bom evitar ser usado pela polícia. Uma das maneiras do jornalista escapar da influência das fontes policiais, do Ministério Público e de outros órgãos governamentais é fazer a sua apuração própria dos fatos. Fazer uma investigação própria é cada vez mais difícil para o repórter porque as redações foram reduzidas ao mínimo de pessoal necessário para a operação do jornal. Dentro dessa realidade, a investigação jornalística vem cada vez mais se reduzindo à publicação de documentos oficiais inéditos. Ou o repórter ter a sorte de esbarrar em um personagem que participou do episódio e que esteja disposto a contar a sua versão.
Na época das máquinas de escrever nas redações sempre que um repórter tinha essa sorte a edição do jornal se esgotava nas bancas. Nos tempos atuais, há um aumento considerável de acessos à edição virtual do jornal e a outras plataformas de notícias. Ou seja, desde a época que os jornalistas escreviam as suas reportagens molhando a ponta de uma pena no tinteiro, a reportagem exclusiva mexe com a redação e com os leitores e desperta inveja nos concorrentes. No final da década de 90, algum gênio da direção dos grandes jornais teve a ideia de varrer a cobertura policial para publicações populares, que são vendidas a preços baixos. Nos últimos cinco anos, a cobertura policial começou voltar a ocupar espaço nos grandes jornais. Por quê? Teve, continua tendo e sempre terá um alto índice de leitura. Leitores de todas as classes sociais se interessam em acompanhar o dia a dia desses casos. Em outros tempos, os grandes jornais teriam uma força-tarefa de repórteres e editores se dedicando a descobrir quem mandou matar a vereadora Marielle. Esse crime foi notícia global, saiu nos principais jornais e noticiários do mundo. A imprensa brasileira, em especial a do Rio de Janeiro, vem fazendo o trabalho de não deixar o assunto desaparecer do noticiário. Mas é preciso fazer mais. Pouca coisa tem sido publicada a respeito do braço político das organizações criminosas do Rio de Janeiro. Esse terreno é campo minado para a investigação policial. Mas não para a investigação jornalística.
Artigo originalmente publicado em “Histórias Mal Contadas”.
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.