Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cultura popular ou produto midiático?

Tendo em vista a intervenção da Rede Globo no samba-enredo da Escola de Samba Rosas de Ouro, do grupo especial paulistano, em função da possibilidade de haver merchandising envolvido na letra de ‘O cacau é show’, há que se questionar: os desfiles de Carnaval (especialmente do Rio de Janeiro e de São Paulo) seriam ainda expressão da cultura popular ou estariam hoje muito mais constituídos enquanto produtos midiáticos?

Composta por Armenio Poesia, Aquiles da Vila, Chanel, Mauricio Paiva, Boldrini e Fred Viana, a música trata da história do cacau, sendo que, para o desfile de 2010, a Escola foi patrocinada por uma marca de chocolates. Como uma das frases da composição parecia estar vinculada a tal marca, a escola foi advertida pela Rede Globo, detentora dos direitos de exibição dos desfiles do Carnaval paulistano na televisão, e pela Liga das Escolas de Samba de São Paulo, havendo uma adaptação para eliminar possíveis associações.

Está claro que a ação de merchandising, caso tenha sido pensada de tal forma, não foi organizada apenas para atingir os foliões que assistiriam aos desfiles no sambódromo paulistano. A midiatização é o que agrega valor ao evento, de forma que as marcas eventualmente apresentadas possam ser consumidas por milhares de telespectadores, sendo o espetáculo nas ruas ou sambódromos essencialmente o palco do show televisivo.

Exposição de realidades e visão de mundo

No entanto, quem se encarrega de arrecadar economicamente com a exposição dos desfiles na TV é a própria emissora, que compra os direitos de transmissão, já que comercializa os espaços de publicidade disponíveis durante a transmissão, enorme fonte de recursos. A inibição de qualquer tentativa de lucro por parte das escolas em relação à midiatização dos desfiles é somente uma forma de proteger o próprio negócio.

O que fica claro é que, ao assumir o compromisso de serem protagonistas de um produto midiático, as escolas de samba, bem como as comunidades envolvidas no processo cultural que é o Carnaval brasileiro, ficam submetidas a normas que não fazem parte de sua tradição. Imagina-se que interferências possam ir além do merchandising. Certamente essas entidades acabam por colocar em primeiro plano as expectativas de que seu desfile seja uma grande atração televisiva, deixando marginalizadas as necessidades da própria comunidade, que poderia aproveitar um dos únicos espaços em que se abre um diálogo entre seu próprio núcleo e a sociedade em geral para valorizar suas lutas e discussões.

Há muitos anos o Carnaval vem sendo tratado como indústria, que gera empregos e rendimentos para milhares de pessoas em diversos locais do país, movimentando a economia de comunidades carentes. De toda forma, não são unicamente as comunidades que lucram com a festa, sendo que muitas empresas são rentáveis justamente em função disso. Mas assim como a geração de empregos é só um resultado positivo da indústria que está em busca da acumulação de capital, também o é a exposição positiva dessas comunidades.

Nos grandes centros brasileiros, hoje o Carnaval é parte da indústria cultural e o que já foi resultado da cultura popular foi reapropriado e transformado em um produto com características desse caldo inicial acrescido de propriedades que o tornam melhor consumível. Desta forma é que, apensar de estarem participando de um produto cultural altamente midiatizado, os grupos envolvidos acabam tendo pouca influência no processo, e pouco podem aproveitar o que seria o maior benefício que poderiam receber ao participar da indústria cultural: a exposição de suas realidades e de sua visão de mundo.

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Respectivamente, professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos; jornalista e mestranda em Ciências da Comunicação pela mesma instituição