Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os sete matizes da ética



Nemo malus felix


(Nenhum malvado é feliz)


Juvenal, Sátira, IV, 8.


Resumo


Em geral, os conceitos de moral, ética e deontologia são tratados como uma única noção, por vezes, até pelos dicionários de filosofia. Entretanto, há recortes importantes a serem feitos, pois, enquanto a moral faz parte do discurso prático, a ética e a deontologia fazem parte do discurso teórico. De qualquer forma, na busca do estabelecimento de valores, seja para um universo mais abrangente – nacional, global –, seja para contextos circunscritos, de uma deontologia profissional, o certo é que as buscas de compreensão em torno do que é o bom, o belo, o justo e o bem, em síntese, configuram um processo dinâmico e com fronteiras inter-relacionais. O que procuramos, aqui, nesta exploração epistemológica brevíssima, é facilitar o esforço de compreensão, especialmente dos mais jovens, os que se preparam para ingressar no ‘mercado de trabalho’ ou mesmo na política, aonde vão encontrar um mundo de uma cultura exageradamente focada no egocentrismo e no narcisismo, e não na convivência cooperativa e baseada em princípios universais.


Palavras-chave: moral, ética, deontologia, legalidade, legitimidade, altruísmo e urgência.


***


Em tempos de ética discursiva, e é o que estamos vivendo, neste momento, no Congresso Nacional e na sociedade brasileira, é hora também de alguma reflexão sobre o que, afinal, é ética. Parece um conceito simples e assimilado naturalmente por todos, não necessitando de muita literatura para que cada um saiba sobre o que, afinal, é a boa conduta. De fato, trata-se de uma capacidade que todo ser humano tem, que é a de saber qual a boa ação, pois, todos nós, fomos dotados de algo que se pode chamar de consciência. Entretanto, mesmo a respeito de como a consciência é formada há matizes e divergências, quando menos, distintas abordagens, razão pela qual iremos contemplar, portanto, um tem simples, com alguma complexidade, sobretudo, para que se evitem as confusões de praxe, entre moral, ética, deontologia e certas idéias correlatas.


Começarei afirmando, e com muita segurança, que se o mandamento bíblico ama o próximo como a ti mesmo fosse observado, de fato e por todos, não haveria necessidade de nenhum código de ética, pois não há máxima superior a essa em todos os 25 séculos de história da filosofia, nada se disse, nada se escreveu e nada se prescreveu com tal perfeição. Entretanto, uma coisa é a realidade; outra, o que deveria ser. E, aqui, já suscitamos um primeiro recorte, importantíssimo, acerca dos campos do saber. Pois, há as ciências das coisas que SÃO – e que tratam de leis, princípios e realidades que independem da nossa vontade; e as ciências que tratam das coisas que DEVERIAM SER. No campo das primeiras enquadramos as ciências físicas, as ciências da natureza, as ciências da vida, enfim, as ciências sobre as quais até nos é dado conhecer, mas, pouco alterar. Vamos supor que um dos milhares de asteróides significativos que passam todo ano por perto da órbita terrestre venha a cair, causando, por exemplo, um grande estrago, não apenas de duas torres gêmeas, mas de toda a ilha de Manhattan. É claro que todos os escudos antimísseis e anti qualquer coisas seriam acionados, mas, com pouca possibilidade de sucesso. Ou seja, há realidades sobre as quais pouco adiantam a nossa vontade e as nossas técnicas.


Já em relação à sociedade e aos modelos de convivência que pretendemos adotar e aperfeiçoar constantemente, bem, aí podemos fazer muito e, sobretudo, intersubjetivamente, isto é, numa relação discursiva entre sujeitos expressivos e respeitosos quanto aos argumentos uns dos outros. É por isso, então, que as ciências morais e as ciências sociais se enquadram entre aqueles saberes sobre os quais muito podemos fazer a partir das nossas vontades, das nossas técnicas e dos nossos constantes avanços em matéria de convivência e conduta. É como se estivéssemos na eterna busca do amar o próximo como a si mesmo, mas, como isso é a perfeição, estaremos sempre no caminho da perfeição, pois, isto, sim, a filosofia vem afirmando há 25 séculos, o ser humano é dotado de perfectibilidade e é precisamente o que nos difere dos simples animais e é isto que faz com que possamos nos humanizar cada vez mais, e até o ponto de um dia podermos completar um projeto de Humanidade, una e justa.




Deus quis que a terra fosse toda uma,


Que o mar unisse, já não separasse.


Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.


Senhor, falta cumprir-se Portugal! (i)


I

Vamos, então, aos sete matizes da ética. O primeiro, vem do campo da filosofia moral e, como contribui a própria etimologia, mos, mores, trata dos costumes. É um tipo de ética difusa e não necessariamente escrita, mas, inscrita na capacidade que todo ser humano tem (seja a priori, seja construtiva) de pensar e agir moralmente e na compreensão geral e cumulativa na sucessão dos tempos a propósito do compromisso de todos para com o bem de todos. Universalmente, há valores acerca do que é o bom, o belo, o justo, o bem, o summum bonum (termo de Platão), o supra-sumo do bem, em síntese. Pode-se afirmar, portanto, que todos estão aptos a discorrer sobre o bem e a praticar o bem conforme uma consciência individual e uma consciência coletiva. E, quando polemizamos sobre as diversas maneiras de praticar o bem, estamos no campo do discurso teórico (da ética), já que a moral faz parte do campo do discurso prático.

II


O segundo, refere-se propriamente à ética e, mais uma vez, nos socorre a etimologia: ethos, que também significa moral, mas, a moral circunscrita a algum tipo de contexto, social ou cultural. Trata-se, ainda, de uma moral difusa, mas, já mais particularizada e variante conforme determinados ethos sociais e culturais. O que pode parecer de bom tom, aqui, pode ser considerado de mau gosto alhures e vice-versa. Isto tem a ver até com os costumes culinários (doce ou salgado, quente ou frio), quanto mais, com relação a assuntos, tais como: casamento (monogamia, poligamia), dote (o pai da noiva paga a festa), dádiva (o visitante tem de trazer presentes) etc. Existem mesmo os códigos religiosos, os códigos de honra e maneiras sobre uma infinidade de atividades e posturas públicas (era estranho para os nossos índios que as mulheres brancas não vivessem nuas, como elas, em pleno trópico). Conta-se que um certo fazendeiro detestava índios, considerando-os incômodos e incivilizados. Constatou-se, no entanto, que ele dormia em rede (hábito indígena); apreciava um prato no tucupi (comida indígena); dedicava-se à caça (prática indígena); não vivia em farinhas e bolos de mandioca (da culinária indígena), ou seja, havia adquirido uns quantos valores de um outro ethos que não o seu de origem, mas, nem se dava conta de tal antropofagia.


III


O terceiro, refere-se a uma circunscrição mais específica da moral, que é a deontologia, muitas vezes, nos dicionários, sinônimo de ética, mas, acreditamos, é preferível fazer-se uma separação, para fins operacionais. É quando a ética se circunstancia ao tempo e ao espaço no contexto da formação de uma cultura (ethos) muito específica, por exemplo, técnico-profissional. É a ética interpares, mas, também reflexiva: tanto uma reflexão endógena, sobre como uma categoria pensa a si própria e sobre as suas melhores condutas; quanto exógena, como a sociedade os vê e o que deles se espera. Pode-se, então, falar em Deontologia Jurídica; Deontologia Médica; Deontologia Jornalística; Deontologia Publicitária (Código de Auto-Regulamentação Profissional); campanha de ética na tv (‘Quem financia a baixaria é contra a cidadania’); Deontologia da mídia (questões de conteúdos e faixa etárias que implicam a Classificação Indicativa – e não mais a censura). É nesse patamar que se situa a questão do DECORO, ou seja, o que é conveniente e não conveniente a um contexto técnico, profissional, político, desportivo etc. É quando uma categoria, discursivamente, isto é, argumentativamente, consensualmente conclui que um de seus pares deve ser excluído do quadro de associados por ter ferio o decoro, por exemplo, o decoro parlamentar. Já em 1946, um deputado foi cassado por ter posado para uma fotografia, que o retratou de forma indecorosa: de black-tie da cintura para cima, mas de cuecão (ceroulas) da cintura para baixo. A foto, de Jean Manzon, saiu publicada na revista O Cruzeiro (ii).


IV


O quarto matiz ético é o da legalidade. Em todos os lugares, em todas as culturas e em todos os contextos (incluindo os profissionais), as convenções morais e éticas se encaminham para uma escritura, para os termos jurídicos. Forma-se tão fortemente uma compreensão e um consenso sobre determinados valores e determinadas condutas que eles têm de ser transformados em leis e implicar punições às desobediências e contravenções. Nesse patamar, o sujeito da ação moral encontra pela frente, por vezes, uma determinação exterior até contrária à sua determinação interior, da sua consciência (imperativo categórico), mas superior em termos de coerção (externa). Já não estamos, portanto, no campo da ética-dever (obrigação moral), mas perante as barras da lei (obrigação legal). Pagar um dízimo, é um dever; estar em dia com o fisco é uma exigência passível de punição em casos de atraso ou o não pagamento definitivo.


V


O quinto estágio da ética é o da legitimidade. Nem tudo que é legal é justo, pelo menos, quando se apresentam circunstâncias específicas, complexas e muito particularizadas. Ordens são ordens e as obedece quem tem juízo, diz a máxima do povo. Dura lex sed lex, diz o provérbio romano milenar. Mas, muita arbitrariedade e muita injustiça se cometem em nome da autoridade e da lei. As leis são auto-aplicáveis, a justiça, não. Nem sempre uma transgressão tipifica crime, se houver uma justificativa, ou seja, um motivo justo para a exceção. Pegadinha: você não percebeu, mas, o radar eletrônico lhe flagrou. Não tem apelação, multa, na certa; pontos negativos na carteira; uma enrascada se as multas não forem pagas. Você desrespeitou todos os ‘pardais’ que encontrou pela frente e as multas virão, na certa, mas, o motivo foi justo, você estava socorrendo uma criança, que corria risco de vida. A criança foi salva e você tem todos os comprovantes da situação. Você tem ou não tem o DIREITO de ser anistiado das multas? Se você encontrar pela frente um órgão de trânsito apenas legalista e (se for o caso) um juiz apenas legalista, você salvou uma vida, cumpriu o seu dever, atendeu a sua consciência, mas, legalmente, se ‘ferrou’. Se você encontrar pela frente autoridades dotadas de uma moralidade pós-convencional (iii) (termo da terminologia de Jean Piaget, cientista do julgamento moral) você será compreendido, reconhecido e ressarcido (se já tiver pago as multas). A antinomia legalidade versus legitimidade é famosa, no Direito, na Ciência Política, em qualquer situação de julgamento. O sujeito dotado de um nível de moralidade age segundo princípios universais de justiça (que priorizam valores maiores, como a vida e a dignidade humana e que colocam o interesse coletivo acima dos interesses particulares) Trata-se, aqui, de se distinguir, basicamente, a conduta que obedece a um controle interno do comportamento que se molda aos controles externos, ou, como diria Riesman (iv), há pessoas que são inner directed e outras que são other directed (entre essas últimas, as que seguem, por exemplo, uma colonização dos valores e do imaginário exercida pela mídia, em especial, a televisão).


Categorias de moralidade
























Níveis da
consciência moral


Categorias relativas ao lado cognitivo da interação


Éticas


Tipos de direito


Pré-convencional


Expectativas particulares de comportamento


Ética mágica


Direito revelado


Convencional


Norma


Ética da lei


Direito tradicional


Pós-convencional


Princípio


Ética da intenção e ética da responsabilidade


Direito formal


Fonte: HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Madri, Taurus, 1987, vol. II, p. 247.


VI


O sexto degrau ético é o do altruísmo. Você poderia muito bem se ater às leis, aos deveres, à decência e a tudo que se exige de uma pessoa correta. Mas, você pode ainda ser daquelas pessoas que se contentam em fazer a sua parte e achar que, por ser uma pessoa honesta e correta já pode estar em paz com a sua consciência e, quem sabe, até dar uma de fariseu na porta do templo, ostentando as suas qualidades: ‘eu pago o dízimo’; ‘pago os impostos’; ‘dou esmolas’ etc. OK, tá tudo muito bom, tá tudo muito bem, mas, realmente… embora o mal do mundo aparentemente não lhe pertença, se você for uma pessoa dotada de altruísmo, você quer ir mais além, quer doar parte do seu tempo, dos seus conhecimentos e das suas ações para melhorar o mundo, a Humanidade, o Planeta, a camada de ozônio etc. É quando você é atingido pelo que Freud chamou de O mal estar na civilização (v) e que implica um questionamento: como posso ser feliz, estando num mundo imundo? Mesmo que a imundície não seja da sua responsabilidade? O problema está exatamente, aí. Responsabilidade. De acordo com os novos valores da ética discursiva, a responsabilidade é social, é coletiva, é de todos, todos têm o dever de contribuir para um mundo mais equânime, plural e justo. O nível ético do altruísmo é aquele em que o seu portador age para além da norma (obrigação legal) e do dever (obrigação moral), age por amor, mas, estamos nos referindo a um amor ágape (vi) (o amor ao próximo e à Humanidade, e sobretudo, o amor aos que mais necessitados da condição humana).


VII


E a sétima nuance da ética? Seria somente para fechar a conta com um número cabalístico? Sou um ser moral (até aí, nada demais, todos o são); conheço e sigo as normas éticas (muito bom!); respeito às leis e as normas do meu país, da minha comunidade e os valores da pátria e da minha cultura; respeito o decoro da minha profissão (sou um profissional digno, decente, honrado etc); faço parte de uma associação que cuida de crianças com câncer e cuido da boa qualidade do meio ambiente. Já não estava de bom tamanho? Não, ainda não dá para se deitar no sofá da moral e da ética e curtir uma preguiça merecida. Há que ser santo? Era bom, mas, deixemos de exageros. Ninguém precisa ser herói ou ser santo para ser um ser moral, um ser ético. Mas, fica, ainda, uma incompletude se me omito face a urgências que a toda hora vêm tirar o sono dos bons, dos belos, dos justos e das pessoas de bem e do bem. Estou em referindo a algo que Betinho denominou de ‘ética da urgência‘. Em certos contextos, não dá tempo ensinar a pescar, fornecer vara, anzol, isca e tantas coisas que a caridade e a benemerência apontam. É hora de correr com o peixe, caso contrário, não haverá aluno de pescaria. Isso me lembra uma certa reportagem de tv sobre a fome no Nordeste. ‘Quinze depois de declarar que nada tinha para comer, voltamos ao local e a senhora fulana de tal tinha morrido’. Chegamos ao topo? Chego ao final desse artigo, lembrando apenas que já há pensadores, entre outros, Karl Apel; Jürgen Habermas; e Edgar Morin, que tem proposto uma ética universal, planetária, uma antropo-ética, validade para todos os cidadãos do mundo e para toda a Humanidade. Que tal o dia em que todo ser humano possa dispor de um passaporte universal? Bem, por enquanto, as pessoas ainda morrem de inanição ou de insolação tentando atravessar fronteiras, seja de um bairro para outro, seja de um país para outro, quando, nesses casos de ‘ética da urgência’, quem tem se de apressar na travessia é o lado que detém o conforto. Lamentavelmente, tem-se constatado que a fome tem aumentado aonde as pessoas já estão escanifradas e que o excesso de proteínas tem-se elevado aonde as pessoas já estão obesas. As projeções da desigualdade apontam para a absolutização dos abismos sociais não apens em relação ao acesso aos alimentos (o problema da fome no mundo não é de falta de comida, mas, de má distribuição e de desperdício), mas de acesso às condições mais básicas, como a água potável (vii).


Diante de todo esse quadro, impossível não se atingir pela pergunta do cancioneiro:


– E você, vai ficar aí ‘sentado num apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar’? [Raul Seixas, Ouro de Tolo].


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Quadro sinóptico


Os sete matizes da ética



































Graus


Esferas


Práticas


7


Urgência


Mobilização


6


Altruísmo


Descentramento


5


Legitimidade


Justiça


4


Legalidade


Convenção


3


Deontologia


Contexto


Cultura corporativa


2


Eticidade


Particularidade


Cultura nacional / regional / local


1


Moralidade


Universalidade – Cultura geral

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Jornalista, mestre em Comunicação e doutor em Sociologia, é professor de Ética na Comunicação, na Universidade de Brasília