A imprensa não tem o direito de ser surpreendida como foi no caso do projeto aprovado pela Câmara de Vereadores de Porto Alegre que instituiu o 8 de janeiro como Dia Municipal do Patriota. Se os jornais tivessem feito o seu trabalho essa história teria morrido na casca e, com isso, teríamos poupado do sofrimento centenas de pessoas que consideram esse dia uma data infame. Por que isso aconteceu? Encontramos a resposta na história. Nas semanas seguintes à instalação do processo de redemocratização do Brasil, em 1985, quando acabou a ditadura militar que havia tomado o poder em 1964, os jornais nacionais, regionais e municipais tinham repórteres, editores e comentaristas acompanhando o dia a dia dos parlamentares no Congresso, nas assembleias legislativas e nas câmaras municipais. Eles sabiam o que acontecia nos plenários e nos gabinetes dos deputados e vereadores e transformavam esse conhecimento em reportagens. Na metade da década de 90, cresceu e tomou corpo nas redações a ideia de que o cotidiano dos parlamentares não interessava mais aos leitores. A consequência foi a diminuição das equipes de jornalistas nas editorias de política. Atualmente, a cobertura do trabalho dos legislativos estaduais e municipais praticamente desapareceu das páginas dos jornais. Nas equipes que cobrem o Congresso Nacional, o número de repórteres foi reduzido e o trabalho é feito por comentaristas que estão muitos quilômetros distantes dos fatos.
Pressionados pela imprensa do país, na segunda-feira (28/08) os vereadores de Porto Alegre fizeram um acordo para que o projeto da vereadora Karen Santos (PSOL), que tramitava desde sexta-feira (25/08), fosse votado e aprovado, revogando o Dia Municipal do Patriota. Mas o estrago já estava feito. Vamos aos fatos. Foi justamente nesse deserto deixado pelo esvaziamento das editorias de política que cresceu, proliferou e vem sendo vendido o peixe de pessoas como o autor da proposta do Dia Municipal do Patriota, o policial penal e ex-vereador de Porto Alegre Alexandre Bobadra, eleito em 2020 com 4.703 votos pelo PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro. Também foi graças ao esvaziamento das editorias de política que o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), sentiu-se à vontade para lavar as mãos e não vetar o projeto, deixando a bronca para o presidente da Câmara Municipal, o vereador Hamilton Sossmeier (PTB) – há matérias na internet. Bobadra é um encrenqueiro que já se meteu em confusões com os seus colegas na Câmara e foi cassado pela Justiça Eleitoral, em segunda instância, por abuso de poder econômico nas eleições. Claro que a imprensa que não iria dizer ao ex-vereador que tipo de projeto ele deveria propor. A função dos jornais é relatar o trabalho dos parlamentares para os seus leitores. E o caso é entre o parlamentar e a opinião pública. Um outro assunto. É desnecessário, perante a abundância de matérias disponíveis na internet. Mas vou refrescar a memória dos colegas e leitores sobre o que foi o 8 de janeiro. A data foi o auge de uma tentativa de golpe de estado que tentou derrubar o recém-eleito presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que, em outubro de 2022, derrotara nas urnas o ex-presidente Jair Bolsonaro, que concorria à reeleição. Em 8 de janeiro, bolsonaristas radicalizados que estavam acampados na frente do Quartel-General do Exército (QG), em Brasília (DF), invadiram e destruíram tudo que encontraram pela frente no Palácio do Planalto, no Congresso e no Supremo Tribunal Federal (STF), os três prédios localizados na Praça dos Três Poderes. Nos dias anteriores a 8 de janeiro eles tentaram colocar uma bomba em um caminhão carregado com 60 mil litros de combustível para aviação que estava estacionado nos arredores do Aeroporto Internacional de Brasília. Também tentaram derrubar torres de transmissão de energia elétrica e invadir a sede da Polícia Federal (PF). Em consequência desses atos, mais de mil pessoas foram presas e processadas por vários crimes, entre eles terrorismo.
Antes de seguir a conversa, julgo necessário advertir os meus colegas e leitores que tudo que estou escrevendo não é opinião. E muito menos um relato do que li em livros e documentos. É o meu testemunho de repórter. Comecei a trabalhar em redação em 1979 e me especializei em conflitos agrários, crime organizado nas fronteiras e migrações. Por conta disso, sempre viajei muito, realizando reportagens. Dito isso, continuamos a nossa conversa. Ao contrário de outras editorias de um jornal, como geral e polícia, o trabalho na política sempre foi tranquilo. Mesmo em época de eleições. Mas isso mudou nos dias atuais, por dois motivos. O primeiro foi o surgimento das novas tecnologias de comunicação que colocaram os parlamentares e ocupantes de cargos executivos em contato direto com os eleitores. E a segunda foi a rearticulação mundial da extrema direita, que, com muita competência e profissionalismo, montou a sua versão dos fatos históricos, como a negação dos horrores dos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945) e, mais recentemente, o negacionismo do poder de letalidade e contágio da Covid, a pandemia que entre 2020 e 2021 matou 14,5 milhões de pessoas no mundo, 700 mil no Brasil. Conseguiu eleger Donald Trump (republicano) presidente nos Estados Unidos (2017-2021), Bolsonaro no Brasil (2019-2022) e outros dirigentes em vários países. Trump é um forte candidato às próximas eleições presidenciais americanas (2024). Ele está enrolado com a Justiça e responde a vários processos, um deles se refere à invasão, por seus seguidores, do Capitólio (o prédio do Congresso americano), em 7 de janeiro de 2021. Bolsonaro também responde a muitos processos na Justiça, o mais ruidoso é a investigação da PF no seu envolvimento com o caso das joias – há matéria na internet. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já o sentenciou inelegível por oito anos. Segundo especialistas, essa enxurrada de processos na Justiça torna o futuro dos dois ex-presidentes incerto. Menos para os seus seguidores, que acreditam em um dos ideólogos da extrema direita, o americano Steve Bannon, que defende que quanto mais rolos Trump e Bolsonaro se envolverem, maior será o capital político deles. Dentro dessa ideia entra como uma luva na mão do ex-presidente brasileiro o rebuliço causado na opinião pública pelo Dia do Patriota.
O fato é o seguinte. O Dia Municipal do Patriota foi revogado pelos vereadores de Porto Alegre porque a sua existência incentiva a repetição do que aconteceu em 8 de janeiro. Aquilo foi um crime contra a democracia do Brasil. Também lembro que o conteúdo das 1,3 mil páginas do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19 (CPI da Covid) colocou as digitais do governo Bolsonaro nas 700 mil mortes de brasileiros pelo coronavírus. Os casos da Covid e do 8 de janeiro sinalizam que a história do Dia Municipal do Patriota foi uma bravata macabra da extrema direita gaúcha.
Reportagem publicada originalmente em “Histórias Mal Contadas”
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.