O tema das drogas, seguramente um dos mais importantes e graves no Brasil de hoje, é tratado por alguns setores da mídia sob a ótica de uma imensa simplificação: só é notícia enquanto expressão de uma infração legal. Não resta a menor dúvida de que o crime precisa ser combatido com vigor e sem medo pelo Estado e por toda sociedade, o que deve merecer a larga divulgação dos meios de comunicação. Mas até mesmo para que esse terrível problema seja conduzido com eficácia é preciso encará-lo de modo mais profundo.
A maior parte da cobertura jornalística sobre as drogas está na editoria de polícia, raramente nas seções de ciência, comportamento ou cuidados com a saúde. As fontes entrevistadas são, majoritariamente, os agentes do poder público encarregados da repressão ao delito ou os especialistas em segurança pública.
Os educadores, os psicólogos, os sociólogos, os antropólogos, os cientistas políticos e os historiadores, que teriam muito a dizer sobre a questão das drogas, recorrentes no percurso da espécie humana sobre o planeta, são bem menos ouvidos. Na eventualidade de uma matéria que fuja da abordagem policial, a pauta é sobre a internação, os tratamentos de choque, os corretivos providenciados pelas clínicas de desintoxicação e as eventuais conversões espirituais…
Possibilidades sensoriais
Os usuários de drogas são descritos habitualmente por alguns veículos de comunicação como personagens débeis, doentes ou criminosos, que estão em falta ética com a sociedade e fazem algo demoníaco que destrói famílias e resulta em tragédias irreparáveis. São tidos, quase sempre, como vítimas das más companhias, da degradação moral, da vida desregrada ou da falta de religiosidade e terminam reduzidos a uns poucos estereótipos. Raramente são encarados como seres humanos como outros quaisquer, habitados por sonhos, desejos, carências e contradições. Sensacionalista e capaz de dividir o mundo entre o bem e o mal, a narrativa construída por setores da mídia sobre as drogas adquire registro emocional, que arrebata e transtorna o público, o que, obviamente, não lança qualquer luz sobre o problema.
A partir da perspectiva apresentada, como a mídia pode contribuir para elevar a reflexão sobre as drogas?
Em primeiro lugar, é necessário formular as perguntas essenciais.
Por que é tão comum – e tão antigo na trajetória da humanidade – o recurso a elementos que alteram o padrão habitual da consciência ou que propõem novas experiências a ela? Por que é tão corriqueira e familiar ao ser humano a adoção de comportamentos que fornecem a ele outras possibilidades sensoriais, que o anestesiam da dor de viver, o fazem visitar lugares antes inacessíveis ou o descansam de si mesmo e dos outros com intensa gratificação física e psíquica, ainda que isso possa ser fatal?
Violência urbana
Em que medida o modo como organizamos nossa sociedade e nossa economia leva as pessoas a usarem drogas? E ainda: qual é o significado das drogas na cultura contemporânea? De que capital simbólico ela desfruta? Como ela seduz a juventude? Quais são as alternativas possíveis e as mudanças institucionais necessárias? Que caminhos normativos foram tomados em outros países na questão das drogas? Qual é o porquê da opção reiterada do Estado brasileiro em mantê-las à margem da lei? O que todos nós, juntos, podemos de fato fazer para conduzir problema tão sério, com a sobriedade exigida?
Em segundo lugar, é preciso desafiar os paradigmas já consolidados na abordagem do assunto.
Naturalmente, é sempre positiva toda informação que aumente a conscientização do público sobre as tristes conseqüências causadas especialmente pelo tráfico e que reforce a repulsa social ao que ele representa. Difícil de aceitar, entretanto, por requerer uma alta dose de ingenuidade, é a idéia de que nenhuma outra atividade humana seja capaz de produzir um nível de violência semelhante à gerada por ele.
É certo que o tráfico de drogas degrada profundamente as bases da convivência social pacífica, fortalecendo, por exemplo, o crime organizado. No entanto, é notório que os inúmeros problemas enfrentados todos os dias pelos brasileiros, sobretudo nas regiões metropolitanas, não possuem uma causa única. A violência urbana não emana de fonte exclusiva. Pelo contrário. Ela é acontecimento sutil e complexo, de inúmeras facetas e difícil apreensão, que corre por toda parte, permeando as relações cotidianas entre as pessoas.
Mentalidade e identidade
O próprio modelo de produção econômica vigente fornece vasto material para a violência, uma vez que estimula o extremo individualismo, a competição desmedida e desleal e as perversões do ego. Um sistema de vida que localiza na posse e no acúmulo de bens materiais os critérios para o sucesso e a felicidade proporciona muitas oportunidades para a violência.
É preciso, também, divulgar massivamente novo conceito para o vocábulo ‘droga’, já tão estigmatizado. Isso servirá para confirmar a multiplicidade de recursos empregados pelos seres humanos na exploração de suas diversas possibilidades sensoriais.
Para difundir essa nova percepção, é útil identificar, com clareza, todos os produtos que geram dependência química e entorpecem os sentidos, sem esquecer de mencionar o álcool, o tabaco e outras drogas autorizadas pela lei e anunciadas nos intervalos comerciais, como certas substâncias alimentares, alguns produtos farmacêuticos ou cosméticos.
Práticas que provocam profunda dependência psíquica e emocional, como algumas ligadas à religião, ao corpo e ao sexo, ao trabalho, ao dinheiro ou ao uso de mídias e tecnologias, devem merecer idêntica atenção.
O consumismo, droga que corrói a alma, capaz de afetar irreversivelmente a formação saudável da mentalidade e da identidade de muitas pessoas, também pode ser objeto de rica pauta.
Essas são, pois, apenas duas das várias contribuições que a mídia pode dar ao debate sobre as drogas. Seguramente há muitas outras.
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Advogado, jornalista, mestre em Direito pela UFMG e doutorando em Direito pela Universidade Autônoma de Madri