Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Um passo depois do outro

Após idas e vindas, com um certo atraso e com algumas modificações, finalmente foi aprovado, na última quarta-feira (23), o parecer do relator, deputado Mendes Ribeiro Filho (PMDB – RS), ao Projeto de Lei nº 219, de 2003, que regula o acesso à informação pública no Brasil. A matéria tramitava em uma comissão especial que analisava, além do projeto principal, outras quatro proposições a ele apensadas – entre elas o PL nº 5.228, de 2009, elaborado pela Casa Civil (ver, neste OI, ‘Liberdade, ainda que tardia‘).


Este é um passo importante para, finalmente, regulamentarmos o inciso XXXIII do art. 5º da Constituição Federal, que estabelece o direito de todos de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular ou de interesse geral e coletivo. O inciso prevê o ‘prazo da Lei’ para que informações públicas sejam prestadas pelo Poder Público – prazo esse que, passados mais de 21 anos da promulgação da Constituição, ainda não foi estabelecido.


Os trabalhos da Comissão Especial que analisou o projeto de lei de acesso à informação pública começaram em 2 de setembro do ano passado, quando foi designado relator o deputado Mendes Ribeiro Filho. Diversas entidades foram ouvidas em audiências públicas ao longo de 2009 – entre elas as associações dos procuradores da República, do Ministério Público e dos Magistrados do Brasil, além da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), e da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Também participaram dos trabalhos o Arquivo Nacional, a Organização Transparência Brasil, a organização Artigo 19, a Unesco e a Universidade de Brasília.


Provimento de informações


O resultado foi a apresentação de um substitutivo bastante detalhado e abrangente, muito mais ousado do que o projeto enviado pelo Executivo, e que acolhe a maior parte das sugestões das muitas entidades que participaram do seu processo de elaboração. Se o projeto se tornar lei, qualquer pessoa – não apenas cidadãos, mas também estrangeiros – poderá apresentar pedido de acesso a informações a órgãos e entidades públicas, incluindo autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem a necessidade de justificar os motivos da solicitação. A informação deverá ser prestada imediatamente ou, em casos excepcionais, num prazo máximo de 20 dias, prorrogáveis por mais 10. As regras valem não apenas para a União, como previsto originalmente no projeto do Executivo, mas para estados, Distrito Federal e municípios.


Porém, o substitutivo, a exemplo do projeto do Executivo, faz muito mais do que simplesmente determinar os ‘prazos da Lei’ para a oferta de informações públicas. Ele reitera que a regra é a transparência e que o sigilo somente será aceito para informações pessoais, para dados referentes a projetos de pesquisa e desenvolvimento científicos ou tecnológicos sensíveis e para informações que sejam imprescindíveis para a segurança da sociedade – tendo sempre como balizador o interesse público. O substitutivo também obriga a divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações, reforçando que a regra é a transparência, e a exceção, o sigilo.


No âmbito do Poder Executivo Federal, caberá à Controladoria-Geral da União (CGU) zelar pela correta aplicação da lei. O órgão ganhou também a atribuição de dar a palavra final, na via administrativa, em relação ao provimento de informações. Caso um requerimento de acesso à informação pública seja negado em qualquer dos órgãos ou entidades sujeitas à lei, o cidadão poderá recorrer à CGU que, se julgar procedentes as razões do recurso, determinará a imediata liberação dos dados requeridos.


Como serão os sítios


O substitutivo cria ainda dois novos órgãos, com atribuições exclusivamente relacionadas ao acesso à informação pública: a Comissão de Reavaliação de Informações, ligada à Casa Civil e composta por ministros ou autoridades com prerrogativas similares, que será responsável pela gestão de informações sigilosas; e o Núcleo de Segurança e Credenciamento, integrante da estrutura do gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, a quem caberá garantir a segurança de informações sigilosas.


Ainda que a regulamentação dos procedimentos de acesso à informação seja um evento de importância ímpar para a sociedade brasileira, é na oferta proativa de informações que estão os avanços mais significativos da nossa embrionária lei de acesso à informação pública. A exemplo de diversos países latino-americanos que aprovaram suas leis de acesso recentemente, como Argentina, Chile, México e Uruguai, o substitutivo aprovado pela comissão especial da Câmara dos Deputados dedica vários artigos à publicação obrigatória de informações na internet.


De acordo com o substitutivo, diversas informações de órgãos e entidades públicas, como estrutura organizacional e registro de competências; repasses e transferências de recursos; registros de despesas; procedimentos licitatórios; e dados para acompanhamento de programas governamentais deverão ser obrigatoriamente publicados na internet. A proposta também especifica como deverão ser esses sítios na internet: eles deverão conter ferramentas eficientes de pesquisa de conteúdo; ofertar acesso automatizado a sistemas externos; possibilitar a gravação de relatórios em diversos formatos eletrônicos; manter atualizadas as informações disponíveis; entre outros requisitos.


Transposição para o mundo real


A proposição aprovada pela Comissão Especial, que agora será analisada pelo plenário da Câmara dos Deputados, foi capaz de superar diversos problemas que existiam na proposta do Executivo. Ela é muito mais abrangente, pois não se restringe apenas ao Executivo Federal, atingindo todos os poderes e todos os níveis da Federação. Além disso, o substitutivo extinguiu a possibilidade de sigilo eterno que existia na proposta elaborada pela Casa Civil: o prazo máximo para a manutenção de sigilo passa a ser de 25 anos, prorrogáveis uma única vez por mais 25 anos.


Mas, por mais bem elaborado que seja o projeto, há que se ter cuidado com duas euforias que se convergem nesse tema: a tecnológica e a legislativa. A visão mítica de que a tecnologia é a panacéia para a plena transparência governamental é uma ameaça. Outra ameaça está em não se dar conta de que a aplicabilidade real dos textos legais pode ser superestimada – afinal, quantos são os casos de legislações extremamente modernas, muito bem redigidas, que não passam de letra morta devido à sua incompatibilidade com ritos e costumes das sociedades em que estão inseridas?


Portanto – e isso não é novidade – o papel da imprensa é fundamental na transposição dessa futura lei do papel para o mundo real. Direitos são realmente aplicáveis se, e somente se, a sociedade os conhece, e sabe que pode contar com eles sempre que necessário. E não existe ainda instituição mais capaz de dar visibilidade pública ao tema do que a imprensa. É necessário que ela dê a devida atenção às regras sobre o acesso à informação pública que estão sendo construídas e que, no final das contas, são do seu próprio interesse, já que podem facilitar sobremaneira o acesso de jornalistas – e de qualquer pessoa – a dados governamentais.

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Jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília e consultor legislativo da Câmara dos Deputados; editor do blog Museu da Propaganda