No mês de março, vai começar no Brasil a campanha de imunização contra a gripe A. Ao mesmo tempo, cidadãos europeus e americanos farão fila – metaforicamente – na caixa de devolução. Vários governos já entraram em conversas com os laboratórios para reduzir as compras da vacina. Entre as múltiplas razões, uma é essencial: no primeiro mundo há falta de interesse e, em alguns casos, temor das pessoas a serem imunizadas. Contrariando as informações oficiais, alguns acreditam que o risco de fazê-lo é maior do que o benefício e outros pressupõem que a vacina é desnecessária. A polêmica vai chegar ao Brasil. Como vai participar a mídia?
Em geral, nos países periféricos a mídia segue muito o publicado nos países centrais. A leitura da imprensa estrangeira mostra que, passada a primeira fase de pânico do vírus, o medo foi transferido às instituições que cuidam da saúde. Os editoriais descrevem uma situação na qual as pessoas parecem apenas atores secundários de um filme que não tem mocinho, estrelado pela dupla clássica: dinheiro e poder.
Quando a gripe A (H1N1) apareceu nas manchetes no mês de abril do ano passado, a imprensa tentava em sua maioria informar o que estava acontecendo no mundo e responder a questões práticas e urgentes, do tipo como reconhecer a doença, como se proteger ou se era arriscado viajar, mandar os filhos à escola, beijar etc. Aos poucos, a mídia também mostrou, e em alguns casos amplificou, as preocupações das pessoas que não se sentiam confortáveis com a resposta humana organizada ao ataque de um vírus novo que ameaçava ser letal. Eram matérias que se perguntavam se o país estava preparado para uma pandemia letal, se haveria vagas suficientes nos hospitais e se o Estado teria como distribuir remédios para todos.
Mensagem oficial
Quando assuntos de saúde chegam ao público, a mídia em geral responde de forma rápida e eficiente, à procura de instruções para a vida cotidiana. Porém, na área das opiniões, muitas vezes existe, em maior ou menor grau, desconfiança quanto à informação oficial recebida. É saudável que assim seja. O efeito colateral é que com muito mais informação disponível do que nunca, a população hoje se sente cada vez mais insegura. Há dificuldade em ‘’acreditar’. Parte do problema é a desconfiança geral de que as recomendações que publica a imprensa sejam influenciadas (direta ou indiretamente) pelo poder, seja da indústria ou dos governos. Nessa visão, os jornalistas são só parte de um time de vendas. A perda da credibilidade da informação e, assim, um obstáculo para o sucesso de qualquer campanha de imunização.
Os assuntos tratados no início da pandemia mostravam dúvidas de natureza política e social muito variadas. As pessoas se perguntavam se as vítimas eram muitas mais do que se divulgava, se o vírus foi inventado e tinha vazado de um laboratório, se a pandemia era um ataque terrorista da nova guerra biológica ou se foi causada exclusivamente para tirar a atenção de outras questões inconvenientes. Houve panfletos que também se perguntavam quem eram os culpados (com todas as possibilidades imagináveis, desde geográficas, políticas ou econômicas, até de orientação sexual ou religiosa). Só se passaram alguns meses e nenhum desses assuntos daria hoje uma pauta. Mas a desconfiança ficou.
‘Por que devemos acreditar no que dizem os experts, quando podem estar errados, e com tanta impunidade? Armas de destruição em massa, vírus letais, radiação nuclear, aquecimento global… Por que devemos acreditar neles?’, perguntava um jornalista nas páginas do jornal The Guardian. Em menos de um ano, os cientistas caíram do céu direto para o inferno. Quando o anúncio do nível máximo de alerta da OMS deu luz verde aos preparativos para um ataque iminente, os epidemiologistas eram os heróis que iriam salvar a humanidade, indo um passo à frente ao que parecia ser o pior inimigo da história. Quando os casos diminuíram, as manchetes foram do tipo: ‘Um segundo surto vai ser pior’. Até parecia uma conversa de fãs de filmes de ação à espera de mais adrenalina na segunda temporada. No inverno mais frio das últimas décadas no hemisfério Norte, não obstante, o vírus A (H1N1) perdeu o lugar na capa das revistas. E a mensagem oficial é sempre a mesma: ninguém sabe ainda o que vai acontecer no futuro.
Visões diametralmente opostas
Com a campanha antigripal, o tema está voltando a aparecer. Nos aspectos puramente informativos, como o calendário de vacinação e das listas de doenças crônicas, grupos etários e situações nas quais a imunização é recomendada, os jornalistas vão cumprir certamente a sua função sem inconvenientes. Provavelmente se somarão novas especulações com relação aos interesses envolvidos e isso, sim, pode influenciar, de forma direta, a resposta popular às campanhas de vacinação. A responsabilidade não é menor e por isso seria desejável que a apuração fosse extremamente rigorosa. Já há experiências em que semear dúvidas a respeito da segurança das vacinas impede as campanhas de alcançarem os objetivos.
Qual será agora a atitude dos editores que deram relevância às matérias de gripe A, e que por aquela decisão editorial hoje estão sendo atacados? Como escreveu Alberto Dines, ‘a notícia de hoje, tem principio, meio e fim, não obstante amanhã estará certamente superada. Como os trabalhos científicos’. A comparação é válida, porém os cientistas têm facilidade maior para aceitar essa idéia.
Os jornalistas que tomaram a luta contra a gripe como uma causa poderiam dizer, em sua defesa, que ninguém sabia o que ia acontecer e se fossem alertar só quando o problema fosse real, e não hipotético, seria como recomendar construir prédios antissísmicos depois do terremoto. Por outro lado, ainda que consideremos como verdade que a ansiedade é favorável às vendas (não só de álcool em gel, mas também de jornais), todos sentiriam medo e se alguém da imprensa tivesse feito uma escolha editorial contra a corrente poderia até ser acusado de negligente. Hoje todo mundo sabe que o problema não foi tão grave assim, mas se a ameaça tivesse se tornado verdade, sem dúvida a informação precoce teria salvado vidas. A responsabilidade da mídia na saúde pública obriga a aceitar a possibilidade de erro, na hora de alertar preventivamente. O problema aparece uma e outra vez. Mesmo acreditando na integridade ética dos envolvidos, há visões diametralmente opostas na utilização do princípio de precaução e difusão dos riscos.
Risco pode ser inferior, mas não zero
Pobres os consumidores de matérias de saúde que já estão atordoados pelas contradições derivadas da necessidade da imprensa de ter na informação médica o ritmo frenético dos outros cadernos. O tempo todo há informações ‘novas’, mais ou menos inquietantes do tipo ‘o uso do celular causa câncer’’, mesmo que na semana seguinte a mesma tecnologia apareça como inócua. As certezas são destruídas ao ritmo das edições. Em assuntos de medicina e meio ambiente, quando os jornalistas têm que escolher entre semear temores com dúvidas e suspeitas ou esperar ter provas irrefutáveis para anunciar um perigo, geralmente, fazem a primeira escolha. As sequelas estão à vista.
Agora, a pandemia de ansiedade se reciclou, em poucos meses, do temor ao vírus em temor à vacina. Mesmo avaliando rigorosamente os dados, às vezes o jornalista pode chegar a ter informação com igual grau de confiabilidade a favor e contra quase qualquer assunto. É o caminho torto da ciência. Isso aconteceu com o vírus A (H1N1) e vai acontecer também com a vacina. Há evidências que indicam que quem receber a vacina vai correr alguns riscos em maior freqüência que quem não receber, e há pesquisas que relativizam a associação. No quesito segurança, não é possível exigir certezas que não existem. De maneira geral, os estudos prévios a uma medida massiva, como uma campanha de vacinação, só podem com certa fiabilidade certificar que o risco para a saúde é inferior a algum valor, mas nunca é zero.
É preciso confiança
Muitos americanos hoje têm receio da vacina devido aos potenciais efeitos adversos associados que foram divulgados, sobretudo na web. É verdade que, nos anos 70, uma campanha de vacinação impulsionada até pelo famoso Jonas Salk foi abortada nos EUA por um aumento dos casos de uma doença rara (síndrome de Barré Guinle). Mas foram as idas e vindas da decisão política de informar ao povo àquela época – que daria para criar um filme de muita ação e suspense – o que alimenta a desconfiança de hoje.
‘Coisas ruins acontecem todos os dias sem serem previstas’, relativiza um relatório aprovado por pesquisadores de 13 centros independentes, segundo publica o jornal médico britânico The Lancet. ‘Há pessoas que, incorretamente, associam problemas coincidentes e não relacionados às vacinas.’ Os cientistas usaram como exemplo quatro mortes suspeitas que frearam uma campanha antigripal no ano de 2006, em Israel. ‘Estatisticamente, pelo tamanho do grupo imunizado, se esperariam 20 mortes súbitas nas 24 horas seguintes, e não apenas quatro!’ Tomara que os jornalistas saibam interpretar os números e as estatísticas que usam nas matérias.
Para o sucesso da campanha de vacinação que se inicia agora, é preciso confiança. Vamos continuar a ‘’acreditar’’ na OMS? Vai ser a escolha de cada profissional. Porém, se pela dificuldade dos comunicadores em informar as incertezas a ciência seguir a desvalorização da política, o futuro da humanidade será ainda mais incerto.
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Bióloga e jornalista especializada em saúde