“Saúde e bem-estar. Minhas anotações”. Esse é o título do livro que lancei em 2022. Não é comum alguém com formação jurídica produzir uma obra nessa área. Obviamente, não tratei de procedimentos médicos ou medicamentos. As quase 280 páginas do livro, voltadas para destacar questões de alimentação, atividade física, hábitos diversos e equilíbrios espiritual, emocional e social, podem ser resumidas de maneira intuitiva. É possível afirmar que hábitos saudáveis produzem qualidade de vida (saúde e bem-estar) consistente e duradoura.
Na referida obra, dediquei capítulos específicos para: a) indústria alimentícia; b) agricultura moderna; c) pecuária moderna; d) indústria da pesca e e) indústria farmacêutica. No capítulo 12 do livro, afirmei que essas indústrias possuem um denominador comum. Registrei: “As atividades referidas são importantíssimos braços da atividade econômica no âmbito do sistema socioeconômico capitalista na sua atual etapa financeira e monopolista. A lógica fundamental do sistema, bem identificada nas práticas das indústrias destacadas, é a acumulação frenética, contra tudo e contra todos, dos maiores lucros possíveis. A saúde das pessoas, o cuidado com o meio ambiente e o tratamento decente para com os animais, em suma, os mais caros valores morais e civilizatórios, são aspectos claramente secundários. Tudo se transforma em mercadoria, a ser comprada e vendida no mercado para gerar um contínuo acúmulo de riquezas nas mãos de poucos, muito poucos”.
No capítulo 11 do referido livro foi abordada especificamente a atuação da indústria farmacêutica. Foram destacados os seguintes problemas, de uma das atividades econômicas mais significativas e lucrativas dos tempos atuais: a) as enormes “fragilidades” observadas nas pesquisas de medicamentos; b) as relações “discutíveis” entre a indústria farmacêutica e boa parte da comunidade médica; c) a interação entre medicamentos, como questão praticamente desconsiderada; d) a atuação extremamente leniente das agências reguladoras; e) o financiamento empresarial explícito e implícito de estudos científicos para corroborar a eficiência de medicamentos e f) os gastos monumentais em marketing (nove das dez maiores farmacêuticas do mundo gastam mais em propaganda do que em pesquisas).
A indústria farmacêutica é o tema da série, com seis capítulos, “O Império da Dor”, veiculada na plataforma de streaming Netflix. São dois os personagens principais da história de tráfico legal de drogas que marcou os Estados Unidos nos anos 90: Richard Sackler e o OxyContin.
Richard Sackler desenvolveu um medicamento com clara consciência dos malefícios envolvidos. O produto foi colocado no mercado a partir de uma “suspeita” autorização do FDA, a agência americana responsável pelo controle dos remédios. A agressiva campanha de marketing utilizada para disseminar o medicamento envolveu um exército de jovens promotoras, cupons para recebimento gratuito das primeiras remessas e associações questionáveis com médicos para indicar a nova droga aos pacientes.
OxyContin foi o remédio patrocinado por Sackler. O único ingrediente ativo era a oxidona, parte da família de substâncias químicas da heroína. O medicamento era duas vezes mais potente do que a morfina. O OxyContin livrava um indivíduo do último grau da escala das dores e gerava uma sensação de prazer intenso e de curta duração. A droga viciou milhares de pessoas, tanto aquelas com dor quanto as sem dor. Estima-se que mais de 453 mil norte-americanos morreram vítimas do uso da medicação.
A série da Netflix combina personagens criados com realidades dramáticas. Testemunhamos que as vítimas do OxyContin contrataram a eliminação da dor física e receberam, como “efeitos colaterais”, enormes e crescentes dores emocionais, familiares e sociais. Observamos a luta desigual dos investigadores do Ministério Público para responsabilizar os poderosos e bilionários operadores da indústria farmacêutica. Ingressamos nas entranhas da máquina de venda de drogas da indústria farmacêutica com suas mentiras, chantagens, fraudes, formação de vendedores inescrupulosos e médicos “comprados” para prescreverem doses crescentes do medicamento “milagroso”.
A “parte” reservada aos médicos nessa história é especialmente preocupante. Afinal, temos uma imagem social de infalibilidade dos “homens e mulheres de branco”. Suas palavras são praticamente leis indiscutíveis. Se o médico diz para fazer, você faz! Essas “verdades” integram o imaginário coletivo, pelo menos na sociedade ocidental que sacralizou as ciências, começando pelas médicas. Entretanto, os vínculos escusos de boa parte dos médicos com a indústria farmacêutica recomendam cautela redobrada com as prescrições de medicamentos. Um estudo realizado nos Estados Unidos apontou que no ano de 2012 os médicos prescreveram mais de 282 milhões de receitas de analgésicos opioides, incluindo OxyContin, Vicodin e Percocet. Esse quantitativo representava quase um frasco para cada habitante dos Estados Unidos. Entre agosto de 2013 e dezembro de 2015, várias empresas farmacêuticas, entre elas a Purdue Pharma, fabricante do OxyContin, pagaram mais de 46 milhões de dólares a cerca de 68 mil médicos do país por meio de refeições, viagens e honorários (fonte: estadao.com.br). Infelizmente, esse modelo de negócio, baseado numa forte associação entre a indústria farmacêutica e uma parte significativa da comunidade médica, não está limitado aos Estados Unidos ou a venda de opioides.
A família Sackler protagonizou uma curiosa “lavagem de reputação”. Os Sackler financiaram fundações médicas e até patrocinaram alas de museus renomados, como o Metropolitan Museum of Art e o Louvre. Existia uma clara estratégia de promoção da imagem nas iniciativas referidas. Atualmente, nenhuma das instituições anteriormente “ajudadas” ostenta o nome da família em placas, paredes ou espaços similares.
Em 2007, a Purdue Pharma reconheceu sua responsabilidade em processos penais promovidos pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos. A empresa pagou mais de 600 milhões de dólares em multas e indenizações. Em 2019, a Purdue Pharma declarou falência. Os membros da família Sackler, para escapar da prisão, fizeram um acordo no montante de 4,5 bilhões de dólares.
É crucial destacar que o caso Sackler-OxyContin não é um evento isolado nem representa da degeneração moral extrema de um ou alguns indivíduos vinculados por laços familiares. A série da Netflix retrata o modus operandi, com maior ou menor intensidade, dependendo do caso, da poderosa indústria farmacêutica nos Estados Unidos da América e fora dele. Um exemplo recente, revelado pelo “People’s Health Dispatch”, destaca várias ações escusas da Big Pharma no âmbito da pandemia da covid-19. A Suprema Corte de Pretória, África do Sul, tornou públicos documentos que demonstraram o poder quase absoluto da indústria na negociação com os governos em relação à venda de vacinas. Os procedimentos envolveram: a) falta de compromisso com prazos para entrega dos imunizantes; b) preços diferenciados entre os países e c) distribuição marcada por preferências dependendo da região do mundo beneficiada (fonte: outraspalavras.net).
O OxyContin saiu do cenário das vendas milionárias, mas os opioides continuam a protagonizar uma terrível história de lucros inescrupulosos e sofrimentos humanos indescritíveis. A fentanila, setenta vezes mais potente que a morfina, parece ter assumido o triste protagonismo nesse verdadeiro filme de terror. “No ano de 2021, a marca de 100 mil mortes por overdose foi ultrapassada nos Estados Unidos. Foram 30 mil a mais do que em 2019, e mais que o dobro de 2015. 70% delas estavam relacionadas a opioides sintéticos, especialmente a fentanila” (fonte: outraspalavras.net). Além da fentanila, que possui efeito depressor, a metanfetamina, uma droga estimulante, é produzida e distribuída em quantidade enorme nos Estados Unidos.
Sam Quinones, jornalista americano, destaca que o modelo de negócios das novas drogas repete os procedimentos da Purdue Pharma. “As pessoas em situação frágil começam com um comprimido por dia. Em duas semanas, já são cinco. Em três meses, são 30 ou 40. É sabido que assim que alguém começa a usar a fentanila, em três meses se tornará o melhor cliente do traficante – até morrer” (fonte: outraspalavras.net).
De forma emblemática, o personagem Richard Sackler afirma na série da Netflix, entre uma braçada e outra numa despretensiosa sessão de nado: “Eu quero ganhar dinheiro e vencer. Farei o que for preciso”. Essa é a perversa lógica do capitalismo, seja ele selvagem ou não. Praticamente tudo se transforma em mercadoria, comprada e vendida para produzir os maiores lucros e acumulação de riqueza possíveis. As normas jurídicas, as questões éticas, a dignidade da pessoa humana e outros limitações civilizatórias são inconvenientes obstáculos a serem habilmente contornados ou afastados.
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Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre em Direito e procurador da Fazenda Nacional