Foi em 2013, na faculdade de jornalismo, a primeira vez que tive contato com os alarmantes números de mortes de mulheres, em decorrência de abortos realizados no país. Os dados divulgados, na época, pela Agência Pública davam conta que a cada dois dias uma brasileira pobre morria por aborto inseguro no Brasil.
Mais de dez anos depois, os números, infelizmente, continuam crescendo, sobretudo para mulheres negras e pobres. Não havíamos tido nenhum avanço no que se refere à legislação e à formulação de políticas públicas no assunto, até a última semana, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou a votação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 que discute a descriminalização do aborto até a 12ª semana.
A presidente e ministra Rosa Weber, relatora do caso, foi quem iniciou a votação no plenário virtual. A ação, apresentada pelo PSOL e pelo Instituto de Bioética (Anis), questiona trechos do Código Penal, de 1940, ou seja, quase após 80 anos. Com um discurso amparado nas recomendações internacionais da Organização Mundial da Saúde (OMS) e na Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), de 2021, realizada pelo Instituto Anis e diversos outros estudos científicos, a magistrada foi enfática: “a maternidade não há de derivar da coerção social fruto de falsa preferência da mulher, mas sim do exercício livre da sua autodeterminação na elaboração do projeto de vida”.
Esse é o primeiro movimento dos órgãos de justiça no Brasil, depois de quatro anos de obscurantismo do governo da morte de Jair Bolsonaro que tentou dificultar o acesso ao aborto, mesmo nos casos já garantidos por lei. Nos últimos anos, o Estado violentou meninas, crianças e mulheres dificultando o acesso ao procedimento em casos de estupro.
A criminalização ao qual as mulheres são submetidas não impede que o procedimento ocorra, mas as leva a buscar a clandestinidade. De acordo com os dados da Gênero e Número, entre 2012 e 2022, 483 mulheres morreram por aborto em hospitais da rede pública de saúde do Brasil. Além disso, segundo dados da PNA, pelo menos uma em cada sete mulheres já interrompeu uma gestação no Brasil.
Débora Diniz, antropóloga, professora da Universidade de Brasília e uma das coordenadoras da PNA, comentou em live em seu perfil do Instagram o voto da ministra. “É um voto de uma mulher. É um voto que inaugura formas de falar sobre a interrupção voluntaria da gravidez. O voto cumpre com tudo que tem uma prescrição do que é um julgamento constitucional, mas ele também foi escrito para nós pessoas comuns, mulheres comuns, que precisamos ler e dizer: estamos falando de nós, depois de um hiato de silêncio. É um voto acessível”, avaliou.
Um jornalismo que acolhe, mas que também é perseguido
A decisão da ministra é histórica por uma série de fatores, e um deles se dá pelo dia 28 de setembro, quinta-feira, Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe. Em alusão a data, o Portal feminista Catarinas, em parceria com a Revista AzMina e Gênero e Número, lançou uma série de reportagens chamada “Aborto é cuidado”, que aborda as consequências da descriminalização do aborto: como questões socioeconômicas, pesquisas, indicações de filmes e documentários sobre o assunto. Segundo os portais, o objetivo é “apontar para a necessidade do acolhimento a quem decide abortar, traçando uma linha entre cuidado e aborto”.
“Todo mundo ama alguém que já fez um aborto”, foi o tema do editorial lançado na última semana nos três veículos. São textos que educam, acolhem, esclarecem e que contribuem para fomentar o debate sobre direitos reprodutivos e dignidade para mulheres, meninas e pessoas que gestam.
Foi também o Portal Catarinas, junto do The Intercept Brasil, que deu visibilidade a uma menina de 11 anos que, vítima de estupro, teve seu direito violado ao acessar o abortamento. Tanto as jornalistas responsáveis pela cobertura, quanto médicos e advogadas foram alvos de perseguição e de uma CPI na Assembleia Legislativa de Santa Catarina.
O Portal Dráuzio Varella, formado pela equipe do médico amplamente conhecido em todo o país, também trouxe alguns materiais didáticos, em forma de vídeo, esclarecendo os motivos de tratarmos o aborto como uma questão de saúde pública no país. Amparado em pesquisas, infográficos e numa linguagem acessível, o médico e sua equipe explicam o impacto em gastos na saúde pública, as causas de mortalidade, entre outros fatores relacionados ao aborto.
A editora-chefe do Portal Drauzio Varella, Marina Varella, ao divulgar o material, cita a palavra coragem ao abordar a temática. Diferente do que vem fazendo a mídia tradicional, falar sobre o assunto como saúde pública desagrada e enfurece grupos que estão sempre a postos para levar o debate para fora da laicidade a qual está inserido.
A exemplo dos veículos citados acima, muitos outros coletivos também vêm noticiando o tema com ampla cobertura e muita responsabilidade.
Coberturas focadas em saúde e direitos fundamentais
É de autoria do Portal Catarinas, em parceria com a Plataforma “Nem Presa Nem Morta”, o guia “Boas práticas de cobertura feminista sobre aborto no Brasil”. A publicação gratuita está disponível no site do Catarinas. O Guia é apoiado pelo Anis, Cladem, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde e Coletivo Margarida Alves.
A diretora executiva do Portal Catarinas, Paula Guimarães, ressaltou no dia do lançamento do guia, ocorrido no dia na Liberdade de Imprensa que “nada mais oportuno do que tratar da cobertura do aborto no dia que evidencia a liberdade de imprensa. Por ser capturado pelo estigma, o assunto é constantemente interditado e alvo de desinformação”, falou.
O jornalismo que atua como vanguarda dos direitos das mulheres, é também uma ponte para estabelecer diálogos saudáveis com a opinião pública. Como também aprendido nos bancos escolares da universidade, o jornalismo deve ficar ao lado dos que não tem voz, e essa missão só é cumprida com maestria quando nos posicionamos diante de injustiças e em defesa das minorias.
Reportagem publicada originalmente em objETHOS.
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Tânia Giusti é Mestre em Jornalismo pelo PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS