Chuvas torrenciais como as que caem nesses dias sobre Santa Catarina, há cerca de um mês afligiram também o Rio Grande do Sul, principalmente na região do Vale do Taquari.
Os prejuízos humanos, apesar da contagem de 51 mortes, não cabem em números, mas hoje, já temos a dimensão dos estragos materiais que devastaram as cidades banhadas pelo rio. No entanto, quando a água ainda caía e o rio ultrapassava em 10 metros a cota de inundação, era difícil entender o que estava acontecendo naquelas cidades e com aquelas pessoas.
Enxurradas e outros desastres ambientais se tornaram comuns nos últimos anos em razão das mudanças climáticas provocadas. A repetição, das tragédias e das formas de comunicá-las ao público, vem fazendo com que naturalizemos esses acontecimentos. E era tomado por esse sentimento quase de indiferença que eu acompanhava as primeiras imagens e vídeos que chegavam do Vale do Taquari pelas redes sociais. No máximo vinha alguma preocupação superficial e passageira.
A sensação mudou quando liguei o rádio (na verdade, o aplicativo), como faço pelas manhãs. Coloquei na Rádio Gaúcha e a equipe parecia compartilhar o mesmo sentimento que eu tinha. “Acho que hoje teremos bastante notícias do Vale do Taquari, pois parece que a situação não está nada boa por lá”, foi o que disse uma das apresentadoras no começo do programa, também ainda sem saber muito bem o que estava acontecendo.
Tenho o hábito de ouvir rádio, mas quem acompanha a televisão certamente teve a mesma impressão. Daquele momento em diante, apresentadores, repórteres, locutores, ouvintes e telespectadores pareciam estar todos em um só lugar, compartilhando a crescente angústia de cada nova informação que vinha do Vale.
O que vimos foi uma cobertura em muito diferente daquelas convencionais, nas quais a objetividade faz nos acostumarmos com a desgraça. Também não foi sensacionalista, que se aproveita do sofrimento.
Foi uma cobertura humana, comunitária. Feita de, sobre e por pessoas, que nos conectou pelos sentimentos. Foi uma cobertura onde a subjetividade esteve presente. Os relatos dos jornalistas que foram até os locais atingidos, que presenciaram a devastação, não eram apenas a descrição dos fatos, mas a transmissão das próprias emoções dos profissionais.
No rádio, ouvíamos repórteres apresentarem seus testemunhos com a voz embargada e, na TV, os apresentadores apareciam com olhos marejados.
O fotojornalismo e a cinematografia complementavam os relatos com imagens aterradoras: moradores vagando pelas ruas sem ter para onde ir, moradores dormindo em frente aos destroços daquilo que um dia foi sua casa, além das escolas tomadas pela lama.
Nós, ouvintes, fomos envolvidos pelas histórias, choramos com a dor dos outros e celebramos desfechos de dilemas envolvendo pessoas que sequer conhecíamos, como a de Moisés Carvalho.
A frase de Everton Chrisóstomo, repórter cinematográfico da RBSTV, retrata o que parecia ser comum aos jornalistas e demais profissionais da imprensa que trabalharam na tragédia. “Tem de verdadeiramente viver [a situação]: não empatia de falar, não para que outros vejam. Empatia de sentir o que as pessoas estão passando”.
Não foi uma cobertura perfeita, e nunca é. Mas o fato é que o trabalho jornalístico desempenhado pelos veículos de comunicação foi fundamental para informar e mobilizar pessoas, instituições e entidades do RS e do país a levarem ajuda aos atingidos. Surgiram arrecadações coletivas e os pedidos de doações de alimentos, roupas e itens de higiene foram atendidos por pessoas de todo o Brasil. Nada disso teria sido possível sem o abraço do jornalismo com a subjetividade.
O momento realmente pedia por uma cobertura nesses moldes. Mas fato é que os resultados de tal abordagem deixam ensinamentos. A jornalista e membro do Conselho Editorial da RBS, Anik Suzuki, escreveu recentemente que viu “um jornalismo empático, próximo das pessoas e, muito importante, sem os exageros e demagogias da exploração fácil de tamanha vulnerabilidade”.
Empatia, sentimento e proximidade, termos que aparecem nas falas de Chrisóstomo e Suzuki, podem ser compreendidos como valores necessários ao jornalismo contemporâneo, uma prática socialmente engajada.Eles são basilares para um tipo de jornalismo humanizador e “desalienante”, que busca a transformação social, como defendeu Adelmo Genro Filho.
Assim, enquanto governantes e órgãos de defesa civil tiram duras lições para que os erros cometidos nessa tragédia não voltem a se repetir, ao jornalismo também cabe um momento de reflexão. Para ele, no entanto, é hora de aprender com os acertos.
Uma vez mais, o jornalismo mostrou sua importância. Informou, conectou pessoas, mas também sensibilizou e produziu conhecimento, evidenciando o potencial de uma abordagem centrada nos aspectos singulares da vida humana, o que parece ter sido percebido pelos próprios veículos de comunicação e seus profissionais.
Um potencial que, como visto, é necessário em situações como a que viveu a população do Vale do Taquari, mas não apenas. Pode ser transformador também quando empregado em assuntos ordinários, do cotidiano, funcionando como um mecanismo promotor de mudanças, rupturas e surgimento de novas ideias. Não há de se descartar a objetividade dos manuais, mas, a exemplo da cobertura mencionada, os momentos recentes em que o jornalismo demonstrou sua relevância enquanto instituição coincidem com abordagens subjetivas e socialmente engajadas.
Reportagem originalmente publicada em objETHOS
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João Victor Gobbi Cassol é mestrando no PPGJOR/UFSC, pesquisador do objETHOS e do Grupo Biosofia (Pesquisas e Estudos em Filosofia) URI-FW