Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A causa da tragédia é o El Niño. Será?

(imagem: Nasa capta imagem do El Niño / Imagem: Sentinel-6 Michael Freilich/Nasa)

Em toda a sua extensão, o Brasil tem vivenciado uma série de ocorrências de eventos climáticos extremos. Enquanto o Rio Grande do Sul tenta se recuperar após a passagem de nove ciclones em apenas três meses, estados da Região Norte enfrentam uma das mais graves estiagens de sua história. Os rios da região amazônica estão se transformando em bancos de areia, minando as possibilidades de deslocamento das populações — não é possível ir à escola nem aos postos de saúde. No Rio Negro, as embarcações encalham, prejudicando o abastecimento de água potável e alimento para os ribeirinhos. O combustível também não chega para fins de iluminação. Em outros pontos, a baixa profundidade e o aquecimento das águas têm causado a mortandade de peixes e mamíferos aquáticos, como no Lago Tefé em que mais de 100 botos foram encontrados mortos. Soma-se a isso a facilidade de expansão dos focos de incêndio em razão das temperaturas, estiagem e descida do nível das águas dos rios.

Esse cenário observado nos últimos meses pode, em parte, ser atribuído à influência do El Niño, caracterizado pelo aumento de chuvas no sul e secas prolongadas no norte e nordeste, combinado com o aquecimento do Oceano Atlântico Norte. Os dois fenômenos inibem a formação de nuvens e chuvas no Norte do País, o que acentua as características típicas do chamado “verão amazônico”, que costuma ser mais seco. Entretanto, de acordo com especialistas, a intensificação desses fenômenos precisa ser vista a partir de um contexto mais amplo, de transformação do ambiente e alteração do que até então se conhecia sobre o clima.

No caso da seca histórica que afeta os estados da Região Norte, a combinação do desmatamento e das queimadas na Floresta Amazônica tem relação direta, pois prejudicam a capacidade que o bioma possui de produzir umidade e de reter gases do efeito estufa. Por conta disso, a região se torna mais suscetível aos mais variados tipos de desastres climatológicos. Carlos Nobre, climatologista, explica que a seca, quando somada ao desmatamento da região, desregula o oferecimento de chuvas e prolonga esse período: “Em todo o sul da Amazônia, nós temos mais de 35% de áreas desmatadas e degradadas. Durante a estação seca, a Amazônia recicla muita água, cerca de 4,5 mm de água por dia. São 4,5 litros de água por metro quadrado de floresta. Já na pastagem muito degradada, ela recicla no máximo 1,5 mm. Com isso, há menos vapor de água na atmosfera, menos chuva durante a estação seca”.

Desde agosto — quando a seca no Amazonas ganhou repercussão nacional — o Portal g1 tem realizado a cobertura dos impactos no âmbito social, econômico e ambiental. No entanto, percebe-se que ao focalizar nos efeitos imediatos, o g1 acaba por não relacionar a situação com o desmatamento e com a crise do clima.

Foram analisadas 47 notícias publicadas no período de 1º de agosto a 3 de outubro de 2023. O filtro das matérias foi realizado no buscador disponível no site do g1, por meio das palavras-chave “seca”, “estiagem” e “Amazonas”.

Desse total, apenas quatro notícias estabelecem uma conexão entre o evento extremo de seca e as mudanças climáticas. São elas: “Especialistas analisam causas dos fenômenos climáticos catastróficos dos últimos meses no planeta”; “Seca fora do normal em rios da Amazônia tem relação com El Niño e aquecimento do Atlântico Norte; entenda” (traz uma citação da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva); “Sem água na torneira, comida mais cara: o suplício das famílias em seca histórica na Amazônia” (apresenta a análise de José Genivaldo Moreira, doutor em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos e professor da Universidade Federal do Acre); e “Temperatura em lago no AM chegou a 40ºC em dia com pico de morte de botos; instituto soma 125 mortes” (entrevista Miriam Marmontel, líder do Grupo de Pesquisas em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto Mamirauá).

Além disso, verificou-se que o enquadramento predominante é sobre os efeitos imediatos, sem trazer uma contextualização que relacionasse a degradação do bioma com o agravamento da estiagem. Quando há uma tentativa de explicação sobre as causas do problema, detém-se em mencionar a combinação de fatores naturais, construindo uma (falsa) ideia de inevitabilidade. Como ocorre nas matérias “Seca no Amazonas deixa cidade em emergência, afeta navegação e dificulta acesso a água potável”, que traz uma nota da Defesna sequência diga Civil atribuindo a intensificação da seca e o aquecimento anormal nas águas somente ao fenômeno El Niño, e “O que é o fenômeno El Niño e como ele vai afetar o inverno”, que chega a afirmar em determinado trecho do texto que não há nenhuma relação entre El Niño e o aquecimento global, embora a que as mudanças climáticas podem alterar fenômenos como esse. A afirmação é dúbia e gera desinformação. Especialistas já apontam o aquecimento global como um fator determinante da frequência e da intensidade do fenômeno. Tal abordagem invisibiliza o debate da responsabilidade da atuação humana no desequilíbrio climático.

A devastação da floresta é um propulsor da emergência climática, que tende a ser mais sentida justamente por aqueles que dependem diretamente da natureza para sua sobrevivência e não conseguem manter seus modos de vida. Com um tempo mais seco e escassez de água, os incêndios terão mais chance de se propagar e alimentar ainda mais o contexto de superaquecimento ou fervura climática. Uma crise humanitária, com aumento de doenças respiratórias decorrentes das queimadas, e falta de água e comida, está em curso. Mais de 170 mil pessoas já foram impactadas e outras ainda deverão ser atingidas, pois a previsão é de um processo longo e intenso.

O Jornalismo tende a reportar os desastres longos, como é o caso das secas, quando se evidenciam situações-limite em que a possibilidade de ação está na fase de resposta, dificultando a cobrança por ações de mitigação e prevenção a partir da invisibilidade, do apagamento da questão na agenda pública. Diante das manifestações frequentes da crise ambiental, cabe aos jornalistas incluírem o clima como valor-notícia não apenas na cobertura dos extremos, mas no rol das pautas cotidianas. Só assim poderemos conectar causas e consequências, e, tomara, agir sobre o planeta de forma mais responsável.

*Estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: claraaguiar14@hotmail.com.

**Jornalista e pesquisadora na área de Comunicação de Riscos e Desastres. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: eloisa.beling@gmail.com.

Reportagem originalmente publicada em Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental.

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Clara Aguiar é estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: claraaguiar14@hotmail.com

Eloisa Beling Loose é Jornalista e pesquisadora na área de Comunicação de Riscos e Desastres. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: eloisa.beling@gmail.com.