Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Transmissões online por celular estão contando a história da guerra Israel versus Hamas

Bem cedinho na manhã do dia 11 de setembro de 2001 eu rumei para uma entrevista com um grupo de jovens fundamentalistas islâmicos em um apartamento na cidade uruguaia do Chuy, que é separada por uma avenida do município gaúcho de Chuí, no extremo sul do estado. Quando entrei no apartamento, num prédio de poucos andares, a algumas quadras da fronteira com o Brasil, tive a minha atenção despertada para o tamanho de um aparelho de TV, que parecia ser maior que a sala onde o grupo de jovens estava sentado em dois sofás. Eles estavam de passagem pela cidade e rumando para Montevidéu, a capital do Uruguai, de onde embarcariam num voo para a Europa. Começamos a conversa e não se passaram nem 10 minutos quando apareceu na TV a imagem do primeiro avião sendo jogado contra as Torres Gêmeas, em Nova York, nos Estados Unidos. Os jovens começaram a falar em árabe e o meu contato, uma fonte que havia conseguido a entrevista, me pediu que saísse. Logo que saí e fecharam a porta do apartamento ouvi gritos de comemoração. Por que eu estava lá justamente no minuto que começou o ataque de 11 de setembro? Por uma dessas coincidências que às vezes acontecem na vida do repórter. Estava lá porque havia uns três meses vinha fazendo uma reportagem investigativa que pretendia responder a uma pergunta: existiam ou não terroristas fundamentalistas islâmicos nas fronteiras do Brasil? Na época, os serviços de inteligência americanos acusavam o governo brasileiro de fazer vistas grossas para a presença de terroristas nas fronteiras.

Fui escolhido para fazer a matéria por ser repórter investigativo e ter como uma das minhas especialidades o crime organizado nas fronteiras. Por essa razão, sempre tive boas fontes nessas regiões. Depois dos atentados de 11 de setembro fiquei mais de meio ano fazendo reportagens sobre terrorismo nas fronteiras brasileiras, especialmente com a do Paraguai. Por conta disso, convivi muito com agentes de inteligência da Polícia Federal (PF) e de agências americanas, israelitas, paraguaias e argentinas em Foz do Iguaçu, cidade do oeste do Paraná, na chamada Tríplice Fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. Por ser densamente povoada por comerciantes árabes e asiáticos, além de pessoas procedentes de outros cantos do mundo, os americanos consideravam a região um esconderijo natural para terroristas. Durante a convivência que tive nesse período com agentes dos serviços de inteligência aprendi a lidar com esses caras. Eles são escorregadios, cheios de conversa fiada, e adoram usar a imprensa para plantar versões mentirosas dos fatos. Contei essa história por ter ouvido o embaixador de Israel nas Nações Unidas (ONU), Gilad Erlan, no domingo (08/10), comparar o 11 de setembro nos Estados Unidos com a invasão e a carnificina feita na invasão do território israelense pelo Movimento de Resistência Islâmica, conhecido como Hamas, que dirige o território de Gaza e tem um braço filantrópico e outro armado. Não vou entrar nessa história de comparação – há material suficiente na internet para quem se interessa pelo assunto. Vou conversar com os meus colegas sobre o que vi de diferente nesse episódio da invasão de Israel pelo Hamas de outras guerras. Em primeiro lugar, o uso das novas tecnologias de comunicação, com destaque para os celulares, a exemplo do que está acontecendo na guerra entre Rússia e Ucrânia. Em 22 de março de 2022 escrevi o post Os pais dos soldados da guerra da Ucrânia e o destino dos seus filhos. Eles ficam sabendo do destino do filho no momento exato do acontecimento, porque a guerra é transmitida online pelos celulares.

A invasão do território israelense pelos milicianos do Hamas está sendo explicada passo a passo pelos noticiários das TVs a cabo. A execução de civis pelos terroristas pode ser vista nas redes sociais. Inclusive, a história de Ranani Glazer, 24 anos, gaúcho (brasileiro-israelense) que estava em um show musical invadido pelos milicianos, que entraram atirando em todo mundo e fazendo dezenas de reféns. Glazer se refugiou em um bunker e antes de ser morto fez transmissões online para as redes sociais. Ele é uma das duas vítimas brasileiras na guerra Israel-Hamas. A retaliação que o exército israelense está fazendo na Faixa de Gaza, com artilharia e bombardeios aéreos, também está sendo transmitida online pelos celulares dos moradores. A história dessa guerra será contada pelas imagens e depoimentos que circulam nas redes sociais. Nas primeiras 48 horas do conflito morreram 2 mil pessoas (incluindo 11 latino-americanos, sendo dois brasileiros), a maioria civis. No terceiro dia da cobertura começou a acontecer uma mudança no conteúdo dos jornais, das redes de TV e de outras plataformas de comunicação. A pergunta que todos os jornalistas, em especial os comentaristas especializados em coberturas de guerra, começaram a fazer era: como o Hamas pôde planejar uma operação de tamanha envergadura sem ser detectado pelo serviço de inteligência israelita, considerado um dos melhores do mundo. Por que os batalhões do exército israelita que ficam de plantão para dar uma resposta imediata em situações de emergência demoraram tanto a agir? A resposta para essas duas perguntas e outras apontou na direção do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, 73 anos. Em outras ocasiões, ele seria blindado em uma situação semelhante. O que aconteceu? Os jornalistas, em especial os israelenses, lembraram que Netanyahu responde a duas acusações criminais na Justiça. E que, por conta disso, vem tentando dar um golpe judicial, mudando as leis do país. Nos últimos meses, manifestantes têm lotado as ruas e avenidas das cidades israelenses pedindo a cabeça do primeiro-ministro. Para permanecer no governo, ele fez uma aliança com a extrema direita religiosa, um grupo que não reconhece a existência dos palestinos, assim como o Hamas não reconhece Israel. Li um artigo do jornalista Thomas Friedman, publicado no The New York Times e no Estadão. De maneira serena e cheio de bons argumentos, Friedman afirma que, no fim de tudo, Netanyahu deverá prestar contas para a Justiça.

Ainda tem mais uma história. Circulou uma notícia de que os serviços de inteligência do Egito, país aliado de Israel, avisaram as forças armadas israelenses que o Hamas estava planejando uma grande ofensiva. O primeiro-ministro desmentiu a notícia. Arrematando a nossa conversa. Comecei a escrever este texto pensado no livro Primeira Vítima, do jornalista australiano Phillip Knightley (1929-2016). Ele diz que a primeira vítima em uma guerra é a verdade. Por muitas décadas essa era a realidade. Os governos contavam a sua versão dos fatos e ela virava a história oficial do conflito. Hoje, graças às modernas tecnologias de comunicação, é possível acompanhar em tempo real os acontecimentos dos campos de batalha e seus desdobramentos entre as quatro paredes dos governos. Isso nos dá uma chance de escrever a real história dos fatos. Claro, existem as fake news. Mas também existem as agências de verificação.

Reportagem publicada originalmente em “Histórias Mal  Contadas”

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.