“Até quando o professor no Brasil será o mendigo de gravata?”. Em outubro de 1978, o professor José Lucindo Ribeiro escreveu um texto, publicado pelo jornal Correio de Uberlândia, no qual questionava as homenagens recebidas pelos profissionais. Segundo ele, professores e professoras são conclamados a elevar seus espíritos e pensar na sua tarefa como uma contribuição para um “bem maior”, mas “nosso aparelho didático é movido a feijão, arroz, carne”.
Quarenta e cinco anos se passaram, finda mais um mês de outubro e, ano após ano, os veículos noticiosos se repetem em rasgados elogios aos profissionais que, com dedicação quase sacerdotal, desempenham seu ofício com zelo. Apesar dos recorrentes exemplos de desvalorização, as notícias reforçam a abnegação missionária dos docentes, que com seu esforço ajudam a alfabetizar, civilizar e melhorar o país. Contudo, quando os mesmos profissionais se unem para reivindicar melhores salários e condições de trabalho, escutam o apelo por mais paciência, porque a educação é importante, mas há demandas mais urgentes no orçamento público. Quando insistem, passam de “heróis da Nação” a intransigentes e inflexíveis, que prejudicam a educação das crianças.
Os maiores autores da literatura nonsense ficariam atônitos ao se deparar com os diferentes modos como os periódicos trataram a figura de professoras e professores ao longo do último século. Em uma mesma edição, às vezes em uma mesma reportagem, esses profissionais são representados como heróis e vilões. E como se dá esse arco? Ao buscar o reconhecimento moral e material como profissionais, a chave muda. Diferente dos heróis livrescos, esses profissionais são pessoas de carne e osso, que precisam de alimento, habitação, vestuário, sem contar os gastos com constantes atualizações. E, quando afirmam que não bastam os discursos elogiosos, não bastam rosas e homenagens no mês de outubro, acabam por assumir novo papel na sua história.
Esse artigo, entretanto, não pretende ser uma defesa da classe docente. Não que essa não necessite, mas muito já se disse a respeito. Esse texto busca apresentar alguns dados sobre como o jornalismo profissional vem auxiliando, há décadas, na construção da imagem de professoras e professores. E sobre como essas imagens estão, em grande medida, afugentando os jovens da carreira docente, criando um círculo vicioso cujos efeitos poderão ser ainda mais danosos à tão sofrida educação brasileira.
Ao olhar um universo pequeno, os jornais da cidade mineira de Uberlândia, ao longo de dez décadas (1933 a 2023), percebemos que professoras e professores são representados, quase sempre, de quatro modos: cívicos, sacerdotais, desvalorizados ou litigantes. Algumas dessas representações se somam e, outras, se repelem. Mas todas compõem as percepções sociais sobre esses profissionais, que os jornais captam, registram e ressoam.
Nas primeiras décadas do século XX, no alvorecer ainda da República brasileira, sustentada por ideais positivistas de progresso, predominava a imagem do professor cívico, aquele cujo trabalho é valorizado por dedicar-se ao bem comum e auxiliar na formação do cidadão que constrói a Nação. Tal noção dividia espaço (e divide até os dias atuais) com outra, também construída historicamente pela forte presença da Igreja Católica na Educação brasileira durante os primeiros séculos da ocupação territorial: a percepção sacerdotal da docência. Nessa perspectiva, a profissão é entendida como uma missão e que, portanto, é feita mais por paixão ou ideologia do que por reconhecimento, seja ele material ou moral.
Contudo, ao reconhecer esses méritos e identificar que o retorno não chega, admite-se que docentes são desvalorizados e que esse desprestígio é crescente. Desde as primeiras décadas do século passado já se encontram notícias reclamando de salários muito baixos e, na maior parte das vezes, com pagamentos atrasados. Porém, as reclamações que antes eram apenas financeiras, hoje atingem também o prestígio social da profissão.
Para tentar sanar esse problema, os profissionais passam a buscar seus direitos, o que os coloca na posição de litigantes. Ao tempo que esse lugar é quase que uma consequência direta da desvalorização, ela também retira do profissional seu caráter sacerdotal. Afinal, alguém que trabalha por paixão ou ideologia não precisa receber nada em troca, certo? Nas notícias que mencionam esse movimento, docentes deixam de ser idealizados como heróis e passam a ser apenas “grevistas”, que atrapalham a organização do calendário familiar e prejudicam a formação de crianças e jovens. O heroísmo cívico e missionário, se esvai quando confrontado com a realidade.
Há ainda, uma quinta representação, que aparece em poucos momentos, mas achamos importante destacar porque tem ganhado maior visibilidade nas últimas décadas: a de subversivo. As professoras e professores subversivos são aqueles que tentam alterar a ordem social, seja criticando-a, seja ensinando os alunos a criticá-la. Essa prática, denunciada em edições do período da Segunda Guerra Mundial e elogiada nos jornais dos anos 2000, vai ser considerada perigosa ou necessária, a depender do contexto social. Porém, recentemente, com movimentos como o “Escola Sem Partido”, seus efeitos na prática social ganharam contornos mais violentos e fiscalizatórios em torno das atividades docentes e vimos se multiplicarem notícias sobre agressões das mais diversas ordens contra educadores.
E como essas representações ou percepções dos profissionais impactam na vida social? De diversos modos, mas aqui destacaremos um que acaba se desdobrando em outros tantos: a falta de procura pela carreira docente. A pesquisa A Atratividade da Carreira Docente no Brasil, coordenada pela Fundação Carlos Chagas, em 2009, mostra de forma incisiva tal realidade. Há mais professoras e professores próximos da aposentadoria do que aqueles que estão concluindo cursos de formação docente no país. Aqueles que optam pela carreira, o fazem por considerarem mais difícil ingressar em outras áreas e por necessitarem de retorno financeiro mais rápido, ainda que menor.
Um dos pontos destacados no relatório final da pesquisa é a discrepância percebida entre a “imagem ideal da docência” e a “realidade em que se desenvolve o ofício”. Some-se a isso o fato de os estudantes conviverem muito próximo a esses profissionais, observando in loco todas as dificuldades. Tais percepções foram percebidas nas falas dos estudantes de ensino médio entrevistados nas cinco regiões do país. “Ao mesmo tempo em que conferem à docência um lugar de relevância na formação do aluno e que o professor é reconhecido pela sua função social, retratam que se trata de uma profissão desvalorizada (social e financeiramente) e o professor é desrespeitado pelos alunos, pela sociedade e pelo governo. O mesmo contraste é identificado quando fazem referência ao trabalho docente. Para os alunos, é um trabalho nobre, gratificante, permeado de sentimentos de prazer e satisfação. Entretanto, […] Trata-se de um trabalho pesado, que requer paciência, muitas vezes frustrante e que vai além da escola.”
Passada mais de uma década da realização da pesquisa, após uma pandemia que fechou escolas por mais de um ano e jogou luz aos olhos da sociedade sobre a relevância de professoras e professores não apenas para formação de crianças e jovens, mas também para a manutenção do arranjo social, não parece haver muito avanço. Em outubro de 2023, o portal G1 noticiou o resultado de uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, que analisou os dados da Pnad Contínua 2023 e identificou professores como profissionais com piores remuneração, entre outras mais de 20 categorias que exigem diploma de ensino superior.
Em relação à busca pelos cursos de licenciatura, que formam professoras e professores, o Censo da Educação Superior, divulgado em novembro de 2022 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e pelo Ministério da Educação (MEC), indica queda. Uma reportagem da Agência Brasil informa que, entre 2011 e 2021, a procura por licenciaturas caiu de 19% para 15% dos ingressantes em cursos superiores, ficando atrás do bacharelado (55%) e dos cursos tecnológicos (30%). Entre os estudantes que buscam a licenciatura, 77% opta pela modalidade à distância.
Voltando à pesquisa de 2009, os pesquisadores consideram que os resultados encontrados são decorrentes das contradições sociais vivenciadas e midiatizadas no Brasil. “A própria sociedade brasileira passa uma imagem contraditória da profissão: ao mesmo tempo em que ela é louvável, o professor é desvalorizado social e profissionalmente e, muitas vezes, culpabilizado pelo fracasso do sistema escolar.” E, entre as proposições que apresentam para aumentar a atratividade da carreira docente, indicam: “Necessidade de intervenções midiáticas e outros movimentos que resgatem no imaginário social a valorização do professor e do ensino público.”
Daí voltamos ao nosso ponto inicial: a forma como o jornalismo (e a mídia como um todo, incluindo também publicidade, ficção e outras) representa os docentes pode estar prejudicando o imaginário social sobre a profissão e, inclusive, afastando os jovens dela? A resposta, óbvia, é sim. Após analisar a longa trajetória de representações dos professores na mídia, é evidente que o jornalismo desempenha um papel crucial na formação da percepção sobre a profissão. Essas representações variaram ao longo do tempo, alternando entre o professor cívico, sacerdotal, desvalorizado, litigante e, mais recentemente, subversivo. Mas, nesse emaranhado de representações, como os jornais poderiam construir uma imagem complexa de professoras e professores, sem repetir as mesmas representações exauridas há quase um século? Há saída para esse imbróglio?
Sim e não. O jornalismo é uma caixa de ressonância que não pode se furtar de retratar os diferentes modos como a realidade se efetiva. Professoras e professores são, efetivamente, idolatrados e desprezados por diversas instâncias sociais. Há muitas camadas nessa trama. Essas representações complexas são um reflexo das contradições presentes na sociedade brasileira em relação aos educadores. No entanto, o desafio para o jornalismo é retratar os professores de forma mais completa, reconhecendo sua importância para a sociedade, mas também suas lutas e desafios diários. Humanizar o relato jornalístico é fundamental, pois permite uma compreensão mais profunda da realidade e pode contribuir para reverter a tendência de afastar os jovens da carreira docente.
O melhor caminho talvez seja, justamente, não querer simplificar. Ir a fundo na essência do que seria a humanização do relato, defendida pelos mais clássicos manuais de redação jornalística, enxergar o sujeito das nossas reportagens como um ser humano, com méritos e limitações, fraquezas e potências, assim como todas e todos são. Pode soar redundante, mas em tempos tecnológicos, humanizar o relato jornalístico é a forma mais fácil de descomplicar complexificando.
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Ana Cristina Spannenberg é jornalista, doutora em Sociologia, professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Uberlândia/MG, coordenadora do Luminar – Observatório de Mídia e Políticas Públicas e do projeto Percursos Docentes nas Páginas dos Jornais.