A mudança nos hábitos de audiência de televisão decorrentes da crise política acentua o debate que já está sendo travado em torno das formas de convivência entre as redes comerciais e as emissoras de serviço público face às mudanças tecnológicas e os novos modelos de negócio que possam daí derivar.
Quase toda a mídia tem chamado atenção para a maneira como a população brasileira vem acompanhando os depoimentos nas CPIs e na Comissão de Ética da Câmara, mas o enfoque diverge sutilmente. O Globo de domingo (7/8), trazia matéria com chamada de primeira página – ‘Loucos por CPI não saem da frente da TV’ – sobre os ‘espectadores fiéis, que deixam de lado até futebol e novela’.
O texto conta o caso de um ex-goleiro do Botafogo, Adalberto Leite Martins, que desmarcou viagem à Itália para acompanhar o depoimento do deputado José Dirceu. E também o da professora Célia Macieira, que está deixando de assistir novelas por causa das CPIs, assim como do músico e sociólogo Luiz Guilherme, que ‘volta correndo do trabalho para assistir a mais um episódio da crise’.
No mesmo domingo, a Folha de S.Paulo estampava, também na sua primeira página, que a ‘Crise política faz TV Senado multiplicar audiência por mais de dez vezes em apenas cinco meses’. Seguia-se um texto sobre a mecânica de funcionamento da TV Senado que, segundo o diretor da secretaria de comunicação social da casa, Armando Rollemberg, emprega 160 funcionários e consome 10,5 milhões de reais por ano.
O texto descreve como os sinais gerados pela TV Senado são distribuídos entre as emissoras que agora pedem sua utilização e lembra que ao longo do último mês a logomarca da TV Senado tem alcançado ‘uma exposição maior que do que as de marcas de anunciantes da novela das oito da Globo, com audiência superior a 40 milhões de pessoas’.
Interesse crescente
Na diferença de abordagens está contida, ainda que casualmente, a grande discussão de bastidores que no momento se trava sobre como o país utilizará o espectro de freqüência nas futuras plataformas digitais. Por um lado, não há como deixar de utilizá-lo para as transmissões em alta-definição, que configuram a qualidade-padrão de imagem e som da televisão para os próximos anos; por outro, não falta quem veja no aumento da disponibilidade de canais uma oportunidade para a diversificação do cardápio oferecido pela TV aberta.
Durante o congresso da Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), que se encerrou na quinta-feira (4/8), em São Paulo, o tema foi abordado. Sob o título ‘Foco da TV digital deve ser o modelo, concordam Minicom e CPqD’, o noticiário eletrônico Tela Viva News, na própria quinta, informava que ‘o debate sobre TV digital, realizado no último dia da ABTA 2005, mostrou ao menos um ponto de concordância entre os debatedores: a discussão sobre o assunto vai muito além da definição de um padrão tecnológico a ser adotado’. O noticiário citava Alexandre Annenberg, diretor da ABTA: ‘A questão não é aprimorar a tecnologia, mas sim buscar um modelo de negócios para a TV digital’.
As redes comerciais nem querem ouvir essa expressão. As emissoras de serviço público insistem nela. Não se trata de decidir quem está com a razão, mas qualquer tentativa de entender por que isso acontece poderá ser útil para a formação do capital de conhecimento necessário para ajudar a televisão brasileira a utilizar as novas ferramentas para crescer.
O certo é que desde a implantação do ambiente de TV por assinatura criou-se a aparência de confronto entre a televisão aberta, generalista, voltada para todos os públicos ao mesmo tempo, e a televisão fechada, segmentada, dirigida a nichos específicos de audiência. Por outro lado, é claro que quando um fato repercute de maneira anômala dentro de um ambiente fechado, ele tende a extrapolar esse ambiente. Assim, um jogo de tênis pertence ao ambiente de TV fechada, segmentada; mas quando um tenista brasileiro chega à final de um grande torneio, então o fato migra para a televisão aberta, generalista.
Analogamente, as atividades do Congresso Nacional, graças à lei que obriga a concessão de um espaço nos lineups dos sistemas de TV a cabo para o Senado e as Câmaras, pertencem ao espectro da TV segmentada. Mas quando se investigam as denúncias de corrupção do porte das que estão sendo descobertas atualmente, então essas atividades ganham a TV aberta e acontece o que é descrito na matéria da Folha. O cotidiano do Congresso faz parte de um nicho segmentado; suas crises alçam-no à esfera de interesse do grande público, ao menu da televisão aberta, generalista.
Mutação rápida
A questão é saber, por exemplo, se a sociedade brasileira só deve se informar sobre o cotidiano do Congresso durante os espasmos de crise.
A TV aberta fala para mais de 140 milhões de brasileiros. A TV fechada atinge cerca de 3 milhões. Não é difícil extrair daí a conclusão de que é pelo menos discutível que 95% da população brasileira só tenha acesso ao cotidiano do Congresso quando aparecem os Delúbios e Silvinhos. E, no entanto, não existe uma conspiração para que a população brasileira seja informada por poucos. Em princípio, é claro que as emissoras de serviço público deveriam pertencer aos lineups dos serviços locais de TV por assinatura. Mas há complicadores. O maior está na grande defasagem que existe nos índices de penetração de TV por assinatura em relação ao que acontece em outras partes do mundo – o que é fruto do modelo com que ela foi implantada no Brasil, há 13 anos, como uma prestação de serviços pelos operadores, e não como uma ferramenta para a construção de redes, assim como da cristalização das diferenças de poder aquisitivo entre as diversas camadas da sociedade brasileira.
O que se discute agora é se o modelo atual continua válido quando se tem a possibilidade de oferecimento de novos sinais abertos a uma população que não tem como pagar por sistemas de TV por assinatura.
É uma questão delicada porque envolve desde modelos de negócios sedimentados – e que ajudaram a fortalecer a televisão comercial no Brasil – até questões de intensa abrangência social, como a educação à distância. Para resolver essa equação, não se pode deixar de passar pela análise do uso que todos têm feito da televisão: os empresários, os governos, as universidades, todos os poderes, enfim, que detêm canais.
É impossível pretender, por exemplo, que não tem importância alguma o fato de que a televisão que se produz no Brasil é na sua maior parte muito ruim. Muito menos negligenciar a evidência de que na dinâmica tanto da radiodifusão quanto das telecomunicações tudo está mudando com muita rapidez. A mutação está nos meios de produção audiovisual por um lado, e na inserção do conteúdo audiovisual num ambiente de convergência tecnológica, por outro.
A próxima crise
A negação da inevitabilidade desse ambiente é um grande complicador para a construção de um palco onde o debate possa prosperar. Vive-se hoje uma insólita proliferação de redes de televisão no país. Todo mundo quer a sua: governos, prefeituras, ONGs, organismos intergovernamentais. E, no entanto, quase todas as emissoras que vão surgindo estão amarradas ao passado – na sua concepção, no seu modelo de financiamento, na sua maneira de enxergar os negócios e os serviços capazes de ser gerados pelo meio. É bastante claro, então, que a resposta para a democratização do acesso do público a uma informação diversificada não passa por aí.
O acaso teve um papel destacado na maneira pela qual o cidadão do Rio de Janeiro pôde se informar sobre a crise política em curso. As duas primeiras redes noticiosas de rádio em FM surgiram no Rio justamente no momento da instalação das CPIs. Tanto a Band News quanto a CBN estrearam nessa faixa (a primeira, uma semana antes) quando a crise política explodia – e imediatamente mudaram os hábitos de consumo radiofônico do cidadão carioca. Ele passou a acompanhar os depoimentos onde quer que estivesse – o que seria normal em qualquer modelo de rádio, mas que simplesmente teria sido impossível apenas alguns dias antes. Não se podia prever tal coisa. Mas os fatos se encarregaram de mostrar qual era o espaço e o papel dos novos veículos.
O espaço e o papel de muitas das redes de televisão que vão se formando a cada semana é bastante obscuro – como é obscuro o papel de uma grande quantidade de emissoras privadas e públicas já existentes – e a forma pela qual elas vêm colaborando para a informação, a educação e o entretenimento do povo brasileiro.
O abismo entre a evolução tecnológica e a sua utilização aumenta de 15 em 15 minutos. Não se pode criar um apartheid entre a produção de conteúdo e a sua veiculação. Muito menos entre a concepção plural de um modelo de televisão para a sociedade brasileira e a disposição (de governos, organizações, empresários) de colocá-la em prática. Da mesma forma, não se pode parar o tempo – e tanto para a sociedade brasileira quanto para a trajetória de sua televisão é justamente aí que mora o perigo.
Na próxima crise política brasileira, o ex-goleiro Adalberto não vai mais precisar adiar uma viagem à Itália. Ele estará se informando até dentro do avião – mesmo que a próxima crise já esteja na esquina. A questão é saber como e por onde Adalberto estará se informando, até que chegue a vez do próximo Delúbio entrar em cena.