[Nota: ver aqui o texto da portaria sobre classificação indicativa, datada de 9 de fevereiro e publicada hoje no Diário Oficial. A portaria entra em vigor 90 dias após a data da publicação.]
O coordenador de Relações Acadêmicas da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), Guilherme Canela, explica nesta entrevista ao Observatório da Imprensa quais foram os critérios adotados na instituição de classificação indicativa para determinados programas de televisão – jornalismo está excluído, não pode ser objeto de qualquer interferência prévia de autoridade, excetuadas algumas decisões judiciais, e programas ao vivo também, porque não é possível monitorá-los – e os resultados que se esperam de sua adoção. Ele diz que foram buscados métodos para tornar o processo o mais objetivo possível. A Andi e o Ministério da Justiça publicaram um livro sobre o assunto, Classificação Indicativa – Construindo a cidadania na tela da tevê, que pode ser lido aqui em pdf.
As grandes redes de televisão resistem à idéia de uma classificação indicativa que respeite faixas de horário e os fusos horários do país, e que seja exibida em todos os canais de forma padronizada. Em 2000, o então ministro da Justiça José Gregori fez a primeira tentativa de adotar a classificação indicativa, prevista na Constituição (artigo 21, que pode ser lido aqui). A iniciativa foi barrada. No primeiro governo Lula, uma segunda tentativa também foi rechaçada pelas emissoras, reunidas na Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão). No final de 2006, as redes foram informadas da elaboração de uma portaria destinada a regulamentar o assunto e mais uma vez se mobilizaram. Essa história foi contada pela repórter Laura Mattos na Folha de S. Paulo de quarta-feira (7/2).
[Acréscimo em 12/2: O manual produzido pelo Ministério da Justiça pode ser lido aqui; a portaria assinada por Márcio Thomaz Bastos em julho de 2006 por ser lida aqui.]
Um anúncio feito pela Rede Globo e exibido também pelo SBT foi criticado neste blog (clique aqui para ler) e gerou uma resposta do diretor da Central Globo de Comunicação, Luis Erlanger (clique aqui para ler).
A seguir, a entrevista.
A questão do fuso horário pode ser o problema prático que mais incomoda as redes de televisão?
Guilherme Canela – Em diversos momentos, mesmo quando o então ministro da Justiça, [José] Gregori, lançou a portaria anterior, a posição das empresas, expressas pela Abert já naquele momento, era claramente que se colocava uma questão operacional muito difícil: cumprir o fuso horário. Me parece muito claro que um dos calcanhares de Aquiles da questão é ter que cumprir o fuso horário.
Os senhores estudaram o impacto dessa obrigatoriedade na operação das redes de televisão?
G.C. – Não, mas chegamos a estudar países que têm situações semelhantes, como por exemplo a Argentina. A lei argentina diz expressamente que a classificação indicativa tem que ser respeitada de acordo com o fuso horário.
O ouvinte ou leitor pode imaginar o que seria um programa potencialmente inadequado passar no mesmo horário em Nova York e Los Angeles? Seria um escândalo.
Neste verão, a novela Páginas da Vida…
G.C. – … Que é classificada para as 21 horas no horário de Brasília, ou seja, para as crianças paulistanas, cariocas, gaúchas, passa para as crianças acreanas às 18 horas.
Existe alguma restrição de idade nesse horário?
G.C. – Até às 20 horas a programação é livre.
Isso é um problema, porque esse longo período livre inclui vários noticiários. Hoje [8/2] foi noticiado o horrível caso da criança arrastada do lado de fora de um carro roubado no Rio de Janeiro. Como é que se faz? Não pode deixar de dar a notícia e, ao mesmo tempo, ela é transmitida em pleno horário liberado… Qual o conceito para resolver esse tipo de conflito?
G.C. – Na verdade, o que acontece é que a legislação de nenhum país, inclusive a do Brasil, permite a classificação de programa jornalístico. Então, nos programas jornalísticos é realmente um trade-off entre a liberdade de imprensa jornalística, de veicular de notícias em qualquer horário, totalmente necessária como uma condicionante das democracias [e a preocupação de preservar as crianças]. A outra coisa que não é permitida é a classificação de programas ao vivo, porque o Ministério não tem como estar ali fazendo a sua checagem. Nos programas jornalísticos não é permitida classificação por horários.
Os programas de entretenimento, filmes, desenhos ou o que quer que seja são passíveis de classificação. No caso do jornalismo, não tem muito como resolver, porque não se pode colocar o noticiário lá para a noite.
Existe algum lugar do mundo em que o noticiário seja obrigado a recomendar que nem todas as pessoas fiquem diante da televisão?
G.C. – Sim, na Austrália, por exemplo, quando se vai iniciar o noticiário que tenha uma notícia como essa que você acabou de descrever, a legislação exige que as televisões avisem aos pais que haverá cenas chocantes ou que podem impactar nas crianças, ou seja, ele não é impedido de veicular no horário, mas deve trazer essa observação.
Em algum lugar mais?
G.C. – A legislação inglesa tem alguma coisa, mas eu teria que olhar mais particularmente essa questão.
Eu considerei um absurdo o tipo de cobertura dado em todo o mundo ao Massacre de Beslan, na Rússia (2004). Provocar pânico, pavor, é o principal objetivo de um ato terrorista. A cobertura jornalística, os critérios de edição não podem ignorar isso.
G.C. – Um dos ganhos que a classificação indicativa pode trazer, na minha avaliação, é que ainda que por determinação constitucional ela não possa se aplicar nem para o jornalismo… E eu acho isso importante, não deveria mesmo, ainda que dispositivos como esse, australiano, possam ser uma saída para alertar os pais nesse tipo de questão, e não se pode também classificar publicidade, isso também não faz parte do nosso ordenamento jurídico, mas ainda que essas duas questões, que também são complicadas, inclusive você tem comentado essa questão da publicidade, que é algo que também nos preocupa muito, mas a minha impressão é que a classificação indicativa, no horário em que os pais vão estar em casa, falando sobre os programas que são muito vistos – como novela, filme, reality show, esses todos que podem ser classificados –, se ela realmente for colocada na forma como se espera por essa nova portaria, ou seja, que a classificação indicativa seja clara, que o pai, a mãe ou o responsável saibam que ali é um programa que não é recomendado para menores de tantos anos, 14, 16, 18, mais do que isso, que os conteúdos que o Ministério julga inapropriado para crianças dessas faixas etárias apareçam muito claramente no início de cada um desses programas, a nossa aposta é que isso gerará para boa parte das pessoas um mínimo de reflexão. Ou seja, por que é que o governo está sinalizando para os pais que esse programa contém um conteúdo inadequado?
A nossa impressão é que essa mínima mensagem pode levar as pessoas a refletir sobre a qualidade da programação. O que acontece muito pouco, hoje, porque um dos nossos problemas é que a televisão não se discute a si própria.
A discussão sobre o que ocorre com uma notícia como essa da criança arrastada pelo carro, ou a qualidade do entretenimento, é algo que chega muito pouco às pessoas pelo principal meio de informação que elas têm, que é a televisão.
Essa discussão da classificação indicativa que está se dando minimamente nos jornais certamente não está sendo absorvida, discutida pela maioria da população, porque não chegou ao principal veículo. Então, a nossa aposta é que quando o sujeito se deparar ali: “Olha, o programa agora foi classificado, tem um símbolo”, isso provocará reflexão.
Hoje não existe um critério uniforme para exibir a classificação.
G.C. – É o óbvio em todos os países, que todos os canais têm que usar os mesmos símbolos, têm que padronizar, porque hoje cada um faz de um jeito. A expectativa é que, ao longo do tempo, isso gere uma mínima reflexão que seja por parte dos telespectadores e isso pode ter um efeito positivo no restante da programação. “O que é eu estou vendo? O que é que meus filhos estão vendo?”
Como se pode responder à avaliação de que as pessoas encarregadas de fazer a classificação não têm qualificação para isso?
G.C. – Para responder a essa pergunta eu preciso fazer uma pequena digressão. A atual gestão do Ministério da Justiça tentou fazer essa discussão em torno da portaria da maneira mais ampla e democrática possível, ao longo dos últimos três anos. Foram grupos de trabalhos formados por especialistas envolvendo as partes interessadas, a Abert, etc. Eles convocaram um colóquio com especialistas na questão. Depois, um seminário nacional, publicaram um livro de artigos, fizeram uma consulta pública que, aliás, eu acho que foi pouco discutida pelos meios, mas que me pareceu algo extraordinário.
Eu não me lembro de uma consulta pública no Brasil com uma quantidade de respondentes dessa magnitude. Foram 11 mil pessoas que participaram da consulta e, por exemplo, coisas como fuso horário, 85% dos respondentes eram a favor de que a classificação tenha que seguir o fuso horário.
Estou dizendo tudo isso porque um dos elementos desse longo processo que vem desde o final de 2003 para chegar nessa portaria em final de 2006, que ainda não foi publicada, envolvia um pregão eletrônico em que o Ministério da Justiça encomendava um estudo sobre classificação indicativa.
E foi a Andi que venceu esse pregão. O resultado é esse livro a que já fiz menção.
Pois bem, nesse estudo que foi feito por nós uma das coisas examinadas foi a legislação internacional. Outra coisa é que a Academia Norte-Americana de Pediatria analisou mais de três mil estudos sobre essa questão de impacto da televisão na criança. E nós, de posse desse material, fizemos esse livro. Mas uma parte deste livro é como, na nossa visão, o Ministério deveria levar essa classificação indicativa na ponta. Como é que o Ministério pode operar a classificação indicativa.
Eu contei tudo isso para dizer o seguinte: uma das nossas preocupações foi transformar isso num processo que não fique a cargo de um burocrata aqui de Brasília ou como o Stepan Nercessian [ator, presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado do Rio de Janeiro] disse: um estagiário, ou o que quer que seja.
Até muito recentemente, essa decisão era tomada com critérios muito subjetivos, o que realmente poderia dar margem a essa crítica. O que está proposto nesse livro, que o Ministério acatou e transformou numa espécie de manual, é fazer do processo algo absolutamente objetivo.
O que isso quer dizer? No limite, qualquer pessoa que vá classificar um programa de posse desse manual atribuiria a mesma classificação. Ou seja, no fundo, não depende de quem está fazendo ali, depende dessa ficha de classificação.
E como é que isso foi produzido? Uma forma de conseguir objetividade é detalhar ao máximo o processo de avaliação de alguma coisa. É preciso preencher tantas minúcias que, no fundo, não se toma uma decisão subjetiva, porque as opções estão quase todas ali – a ficha que nós propusemos para eles, com base nessas pesquisas, tem 461 itens.
Por exemplo, na pesquisa internacional identificamos o seguinte: nos Estados Unidos existem testes psicológicos, pesquisas de impacto da programação em crianças que mostram que se você toma três grupos de crianças aleatoriamente: grupo A, B e C, o A assiste a uma programação sem violência; o B assiste a uma programação com violência na qual o agressor, o sujeito que praticou a violência, é punido no final daquele determinado programa; e o grupo C assiste a uma programação violenta, na qual o agressor não é punido ou [é] valorizado, os testes mostram que o grupo A e B, no final do processo, têm muito pouca diferença em relação aos seus comportamentos, ou seja, um grupo que não assistiu a um programa violento e um grupo que assistiu a um programa no qual a violência é punida acabam não tendo comportamentos agressivos no final do processo.
Já o grupo C apresenta comportamentos de agressividade. Então, com base nisso, o manual pergunta: há violência com punição do agressor? Há violência sem punição do agressor? Ou seja, com isso não há o que seja subjetivo, é só o sujeito marcar sim ou não, e o resultado pode ser obtido até por um um programa de computador: se você tem um programa que tem violência com punição, ele pode ter uma classificação indicativa menor do que se você tem um programa no qual o agressor não é punido.
E isso está fundamentado nesses estudos todos. Essa crítica é, na minha visão, crítica de quem não leu esse documento que está sendo citado. Eu acho que se você ler a declaração do roteirista Marcílio [Moraes, autor da novela Vidas Opostas, da Record], na matéria da Laura Mattos, a minha impressão é que ele tropeça um pouco nisso, porque eu imagino que a Laura deva ter perguntado a ele: “Escuta, esse manual que está sendo proposto talvez não peque pela excessiva objetividade?”; e aí o Marcílio responde algo que não é o que ele vinha declarando: “É exatamente esse o problema, eles querem trazer uma objetividade tamanha para um negócio que é eminentemente subjetivo”.
Evidentemente que isso pode ser uma crítica feita ao processo, mas é o limite de coisas que não se tem mesmo como classificar, ou seja, são subjetivas. Mas o que se buscou nessa ficha de classificação foi apenas obter os elementos objetivos. Vou dar mais um exemplo: as pesquisas que nós analisamos, de impacto de televisão em criança, mostram que é muito diferente para uma criança assistir a um filme com assassinato sendo esse filme em preto e branco ou colorido, porque o sangue tem muito impacto no imaginário da criança.
Então são vários elementos que podem compor uma classificação. Por exemplo: ser em preto e branco, no caso de violência, pode diminuir a classificação, porque o impacto, segundo a pesquisa que existe com crianças, é menor que de um filme colorido. Eu só dei esse exemplo para exemplificar um critério objetivo: se o filme é colorido ou em preto e branco, não há subjetividade. É isso que o sujeito lá estará marcando.
(Transcrição de Raiana Ribeiro.)