O jornalista Carlos Amorim passou por muitas funções e conheceu de perto muita gente e muitos episódios importantes da televisão brasileira nos últimos trinta e tantos anos. Uma parte dessa experiência é relatada em Travessias e travessuras de uma indústria caótica, capítulo que escreveu para o livro No próximo bloco… O jornalismo brasileiro na TV e na internet, organizado por Ernesto Rodrigues.
Amorim é também, provavelmente, o jornalista que mais a fundo estudou a questão do crime organizado no Brasil. Em 2003, lançou CV, PCC: A irmandade do crime, livro que vendeu toda uma edição, a oitava, desde que se iniciaram os ataques do PCC em São Paulo em meados de maio. [Clique aqui para ler uma resenha.] Sua maior crítica à cobertura do assunto pela mídia brasileira é a descontinuidade.
“Há um ataque do PCC com 20 mortos, dá manchete e fica nas páginas durante uns vinte dias, depois o assunto desaparece”, constata.
Diante do cálculo de que a organização tem algo como cem mil filiados, seria razoável esperar o entendimento de que o fenômeno é muito mais enraizado do que se pensa. Mas, segundo Amorim, há uma tentativa de dissimular e esconder os problemas. Ele critica a opção adotada pela Rede Globo de não nomear o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital: “Falar em ´facção´ é esconder o sol com uma peneira, porque é ilusão achar que a mídia é que estimula o crime organizado. O que estimula são necessidades concretas”.
Imposições da globalização
A explicação de Amorim parte de um contexto mais amplo: “Os fornecedores colombianos não vendem drogas no varejo. Precisam ter como interlocutores uma organização centralizada. O mesmo vale para os fornecedores de armas”. Então, o crime no Brasil se organiza, se centraliza, se hierarquiza. Para ficar à altura dos interlocutores externos.
O jornalista toma como exemplo o fuzil AR-15. É uma arma de guerra. Ele é fabricado pela Colt, que o vende para exércitos. Como chega às mãos de traficantes? “Há desvios de países da África, do Líbano – muitos intensos durante a guerra civil [1975-1990] –, da América Latina”, explica Amorim.
Segundo o jornalista, em mais de uma ocasião números de série de armas fabricadas pela brasileira Imbel apreendidas no Rio de Janeiro com traficantes correspondiam a lotes exportados para o Exército do Paraguai. Vão e voltam. Existe projeto de lei para proibir que o Brasil venda armas ao Paraguai.
Esses dois exemplos indicam que a face oculta do crime não é o bandido que a mídia usualmente identifica. É gente que está muito acima disso, na escala social. Uma idéia que certos policiais do Rio de Janeiro, como a inspetora da Polícia Civil Maria Agressivo, procuram rebater.
Amorim, entretanto, menciona prestação de contas do FBI ao governo americano, divulgada recentemente, segundo a qual atividades criminosas dão lucro anual de US$ 1 trilhão. Há autores que falam em US$ 1,5 trilhão.
Para se chegar a totais dessa ordem de grandeza, dez por cento do PIB americano, o dinheiro do crime não pode circular fora da contabilidade dos bancos. “Nem existe tanto papel moeda no mundo”, diz Amorim. “Bancos estão necessariamente envolvidos nisso”.
E há outras modalidades de lavagem de dinheiro no mercado financeiro. “Ações ao portador de empresas que não existem. Digamos, uma mineradora na Tanzânia que jamais extraiu um grama de minério, mas dá dividendos”. No mercado financeiro, afirma o jornalista, isso é simplesmente chamado de “bom negócio”.
A ONU estima o lucro do crime organizado em algo entre US$ 600 bilhões e US$ 800 bilhões, menos do que a cifra do FBI. “De todo modo, é mais do que consegue a indústria do petróleo, ou a indústria automobilística”. E isso, diz Amorim, “a mídia não vê”.
Para Amorim, houve duas políticas de segurança na história da República brasileira. A do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-45) e a da ditadura militar (1964-85), a chamada Lei de Segurança Nacional, retomada da primeira. “Eram políticas feitas para a proteção do Estado e do capital. Vivemos um atraso de vinte anos. Agora o Brasil precisa de uma segurança que proteja o cidadão”.
A mídia não vê, portanto, que o crime é globalizado. “Fala-se em ´crime organizado´ no Brasil. O que existe é a atividade no Brasil de grandes organizações transnacionais, que são hoje em dia cerca de 200 no mundo todo, porque elas tendem a se concentrar, da mesma maneira que acontece com empresas”, afirma o jornalista.
Preferência por Kalashnikov
Amorim conta que em 1994 fez uma palestra para 600 oficiais das Forças Armadas, num curso de Estado-Maior. “E eles não sabiam, por exemplo, por que os traficantes do Rio de Janeiro preferiam o fuzil AK-47, o Kalashnikov russo, ao AR-15 americano”, relata. E explica: o AK-47 tem oito peças, pode ser manejado por uma pessoa menos instruída. É o mais contrabandeado do mundo. O AR-15 tem 18 peças, seu uso envolve maior complexidade. “Era algo que tinha a ver com a profissão deles e eles não sabiam”, espanta-se ainda hoje.
A mesma coisa acontece com a Polícia, diz ele. Conversas com delegados, com gente vezes responsável por departamentos inteiros da Polícia, mostram que se subestima a dimensão alcançada pelo tráfico de drogas, pelo tráfico de armas, pela incrustação social do criminoso.
“O criminoso hoje já é um estrato social modificado. Ele deixou de ser a exceção e passou a ser a regra em uma parte ponderável da população brasileira. As polícias estão muito longe de olhar para isso. A universidade brasileira não estuda isso profundamente. Se você não tem conhecimento, você não vai conseguir produzir boas medidas de combate a esse fenômeno”, critica Amorim.
Em relação ao trabalho da mídia, o que chama a atenção do jornalista é “a falta de embasamento da informação e a falta de conhecimento desse fenômeno como um ciclo histórico e até sociológico dentro do país e no mundo”.
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