Publicado na terça-feira (23/02/2010) no jornal O Estado de S. Paulo, o editorial ‘Intempestiva Justiça Eleitoral‘, sobre a recente cassação do mandato do prefeito paulistano Gilberto Kassab, desperta questionamentos importantes. Kassab, sua vice e outros nove vereadores foram denunciados pelo Ministério Público por terem recebido doações ilegais em campanha de empresas controladoras de firmas prestadoras de serviços à prefeitura e de empresas controladas por entidades sindicais.
Em ambos os casos, as doações teriam superado o teto permitido de 20% sobre o total financiado. Com base neste entendimento, o juiz eleitoral de 1ª instância julgou procedente a acusação do MP e sentenciou a cassação dos envolvidos. O editorial questiona a decisão judicial, menciona ‘sólidas razões’ para a tranquilidade do prefeito, afirma a existência de jurisprudências em seu favor e ataca como irregulares procedimentos constitucionais fundamentais.
Segundo a opinião, existiriam precedentes a favor da regularidade das contribuições eleitorais recebidas de empresas controladoras de outras que prestam serviços públicos. Estranhamente, não menciona outra jurisprudência que repudia a segunda hipótese, das doações de entidades sindicais por meio de empresas de fachada.
indícios de desobediência
A proibição tem fundamento. Visa a defender a independência e a imparcialidade da administração pública. São valores caros, destinados a evitar governantes amarrados a interesses setoriais, contaminando a gestão com parcialidade e comprometimento ético. Previsivelmente, a prefeitura serviu e serviria aos financiadores, famintos por retribuição às vultosas colaborações. Vínculos estabelecidos antes mesmo da eleição, que viciam a igualdade de condições.
Não soa compreensível um jornal conectado aos valores democráticos e preceitos republicanos repudiar uma ação da Justiça que busca evitar o seqüestro do Executivo municipal por interesses de setores econômicos. O editorial soa também assustadoramente panfletário. A grande imprensa, ao contrário, deveria se ocupar de defender, com unhas e dentes, a fiscalização dos entes públicos. Algumas pontuações da mencionada opinião vão além dos contra-sensos ou posicionamentos políticos. Confundem o leitor e impõem uma versão determinista e distante da realidade.
Primeiro, quando questiona a cassação – porque o prefeito e sua vice tiveram suas campanhas aprovadas pela Justiça Eleitoral em 2008 –, o jornal ignora a inteligência do leitor. Àquele momento, a prestação de contas fundou-se principalmente na documentação apresentada pelos candidatos. Certamente, não apresentava quaisquer indícios de desobediência ou infrações. Seria demais esperar de qualquer um que se auto-incriminasse, enviando para auditoria cálculos que não batem.
Defender a hipocrisia
Se agora o posicionamento da Justiça Eleitoral é distinto, não é senão pela óbvia sobreposição de novos fundamentos, suficientes para a denúncia do Ministério Público. As funções constitucionais deste órgão incluem zelar pela administração pública, inspecionando-a e denunciando desvios ou irregularidades a qualquer tempo.
O editorial menospreza a lógica também quando questiona o critério adotado pelo juiz da 1ª Zona Eleitoral, de punir doações ilegais que transpassem o limite de 20% do total., como se fosse uma invenção dele. O teto provém da mesma jurisprudência que fundamenta a tranquilidade de Kassab.
A lei eleitoral não precisou um índice a partir do qual as doações seriam ilegais, valendo-se de termos vagos. Os políticos legisladores de então já pensavam em deixar abertas as frestas nas quais hoje se apóiam. Seriam bem-sucedidos não fossem os tribunais eleitorais rasos, e também superiores, que determinaram um índice prático a partir da análise e da decisão em casos semelhantes. A afirmativa de que ‘o magistrado criou essa porcentagem – sem base legal’ é leviana.
A seguir, o editorial questiona a celeridade dos procedimentos. Soam bizarros brados contra a rapidez processual, defesas de um ritmo tradicional e lento que significaria impunidade. O julgamento de irregularidades de campanha após o fim do mandato é estéril, as penas já não permitem resultados concretos de punição. Trata-se de defender a hipocrisia.
Raciocínios escolásticos
Adiante, ponderações sobre o peso político da decisão, que alimentaria a oposição na campanha eleitoral que se avizinha. Penso que o Estado deveria se preocupar com o peso político dos financiamentos irregulares, do seqüestro de interesses públicos em nome de grupos e setores e das conseqüências desastrosas das doações feitas por entidades de classe que, invariavelmente, cobram de volta seus favores durante a gestão.
Tudo em detrimento do cidadão comum, que não possui representação para financiar campanhas senão com o voto. As doações irregulares priorizam o dinheiro e o tráfico de influência ao sufrágio universal.
Finalmente, com relação à permissão da Justiça brasileira para que juízes de primeira instância possam julgar matéria vencida em tribunais superiores, trata-se de um pressuposto do Estado de Direito. Devemos temer justamente o dia em que uma causa nasça desmerecedora de análise por existirem decisões anteriores em contrário. A via do recurso trará legitimidade e maior razão ao julgamento, exatamente como deve ser.
O editorial do Estado frustra as pretensões sociais de probidade administrativa e reduz a relevância da mídia. Queima o filme do jornalismo de alta qualidade que caracteriza o restante das suas páginas, preferindo raciocínios escolásticos.
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Jornalista, São Paulo, SP