Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Os cuidados para evitar atropelamentos

Mais que em outras ocasiões, a crise política que o Brasil atravessa atualmente implica cautela máxima dos órgãos de imprensa. A palavra de ordem é evitar erros e escorregões que comprometam a boa condução da cobertura e, conseqüentemente, a credibilidade jornalística. O nobre propósito não é novidade e parece obviedade invocá-lo. Infelizmente, no entanto, os erros também continuam acontecendo [ver abaixo remissão para a matéria Entra escândalo, sai escândalo – e os erros ficam’, deste Observatório].

O mau jornalismo é responsável pela maioria dos casos, a exemplo dos que evidenciam a tendenciosidade de um veículo, falhas fundamentais na apuração ou mesmo má-fé dos noticiadores. Outras derrapagens podem ocorrer por problemas de contextualização do assunto. Um exemplo delicado (e grave) é o da jornalista brasileira Melissa Monteiro, cuja entrevista com Lula, gravada em 15 de julho, em Paris, e exibida no domingo (17/7) no Fantástico, foi interpretada como ‘comprada pelo governo’ [ver remissão abaixo]. O aspecto da entrevista que pode ter conduzido ao erro – mas que, de modo algum, justifica o caráter release da matéria – foi a ‘exclusividade’ de uma conversa com o líder brasileiro durante o ano do Brasil na França, salientando as relações diplomáticas entre os dois países.

Não se trata, aqui, de justificar ou defender os erros do jornalismo, nem colocar os jornalistas como vítimas do parecer alheio. Em termos de crítica da atividade, a questão principal se volta para os motivos pelos quais ocorrem os erros: se ‘a imprensa é a única que não pode falhar’, por que (sempre) comete deslizes graves?

Teorias sobre a má reputação da imprensa

Já citei neste Observatório a obra Mauvaise presse, do sociólogo Cyril Lemieux. A reflexão do professor francês se encaixa no que o professor Luiz Martins chamou de ‘ciências que tratam das coisas que deveriam ser‘ [ver remissão abaixo ao artigo ‘Os sete matizes da ética’].

Segundo Lemieux, que investiga por que os erros jornalísticos ocorrem na cobertura política francesa, é o ‘imperativo da comunicação’ que pauta a ação da imprensa. Em outras palavras, trata-se do medo de tomar furo, problema cuja repetição pode implicar conseqüências desastrosas para um veículo, principalmente no que se refere à má reputação (ou mauvaise presse, em francês) com que os órgãos de imprensa são sempre contemplados.

Numa análise do ‘triângulo infernal’ composto pela imprensa, pelos políticos e pela opinião pública, Dominique Wolton, diretor da cadeira de Comunicação do Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França, avalia o desequilíbrio de forças existente entre esses três campos. Em Pensar a comunicação, Wolton escreve:

‘Quando a crise social estoura, a lógica do acontecimento ocupa muito espaço numa economia da comunicação na qual os efeitos da concorrência são tão fortes quanto essa lógica. Tudo se desequilibra e acontece no instante. Na maioria das vezes, ninguém previu a crise que, no entanto, vem de longe; e, em alguns dias, é necessário que, numa espécie de catarse, tudo se resolva. A ponto de, num curto espaço de tempo, uma crise social ou política suscitar um clima de insurreição.’

Nesse sentido, a impaciência, os comentários, a cobertura exaustiva e a dramatização das informações acentuam a atmosfera de insegurança que se instaura a partir daí. Tem-se a impressão que a crise é a única coisa que existe. Sem questionar quanta lenha puseram no fogo, com as mesmas certezas de sempre e sem qualquer tipo de sanção, os meios de comunicação concluem o enfraquecimento e a deslegitimação dos poderes políticos.

De acordo com o pesquisador, impõe-se a necessidade de um balanço entre campos cujas armas são desiguais:

‘Não se trata de diminuir a função crítica da imprensa, mas de admitir a diferença radical de realidades [a da imprensa e a da classe política]. É preciso fazer um aggiornamento (…), porque o papel de contrapoder da imprensa é capital, sob a condição de não ultrapassar certos limites.’

O contrapoder e a dependência

Na mesma seara do ‘triângulo infernal’, o conceito principal que norteia o trabalho do sociólogo Erik Neveu em Sociologia do jornalismo (Sociologie du journalisme) é o de campo, emprestado de Pierre Bourdieu. Essa noção…

‘…define um espaço social relativamente autônomo, estruturado por jogos de rivalidades cujo limite é uma adesão comum dos participantes às suas condições e aos seus valores’.

A partir daí, pensa-se o campo não apenas na sua lógica concorrencial interna (jornalistas versus jornalistas), mas principalmente de sua autonomia externa (jornalistas versus políticos, por exemplo). A imprensa ideal é o contrapoder sem manipulação, mas, por outro lado, não totalmente independente.

Desculpa freqüentemente utilizada para justificar a falta de rigor na apuração das notícias, a lógica de mercado, por exemplo, não significa perda de qualidade. ‘Os jornalistas não são reféns sem poder das lógicas do mercado, mas não podem ignorá-las. Isso cria possibilidades de renovação da estrutura do campo’, escreve Neveu, que destaca a importância da interdependência entre as esferas. Para ele,

‘…propor a autonomia total de um quarto poder é esquecer que, historicamente, todos os poderes sociais souberam se adaptar simbioticamente ao jornalismo’.

Dominando o debate público em torno de um acontecimento como a crise política brasileira ou dominado, por vezes, pelas relações com campos como o político, o que ainda parece faltar ao jornalismo é a autocrítica para ‘não perder a face’. Afinal, o jornalismo faz parte da sociedade. Avança com ela, não contra ela.

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Jornalista, pós-graduada em Ciências da Informação e da Comunicação pela Sorbonne (Universidade Paris IV)