Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo e o STF: entre a teoria e a prática, a realidade

(Foto: de Pexels por Pixabay)

O Supremo Tribunal Federal (STF) formou no último dia 29 de novembro maioria em torno de uma tese que estabelece que veículos jornalísticos poderão ser responsabilizados e punidos judicialmente quando entrevistados compartilharem declarações sobre outras pessoas que contenham “indícios de falsidade” já comprovados e verificáveis.

A decisão rendeu, rapidamente, uma miríada de reações da própria imprensa. Tanto a Folha de S. Paulo quanto o Poder360 divulgaram editoriais criticando a medida, alegando que ela pode abrir margem para autocensura e, na prática, representa uma limitação da liberdade de imprensa, algo garantido na Constituição. Para a Folha, a tese é um “capítulo sombrio” da história brasileira.

Já o Estadão alegou que a medida não é negativa e deve, na verdade, favorecer e incentivar o “jornalismo responsável”, dando parâmetros de atuação e responsabilidade para os jornais. Na mesma linha, o O Globo destacou que a decisão do STF “respeita caráter do jornalismo”, com as punições ocorrendo “se houver má-fé” por parte do veículo.

A divisão entre alguns dos principais veículos jornalísticos brasileiros também pôde ser observada no ambiente digital, com milhares de posts nas redes sociais com diversas opiniões sobre o tema. E, diante da reação, o próprio STF não descarta rever a tese para dar-lhe mais clareza, como informou o ministro Gilmar Mendes à própria Folha, algo que pode ser positivo para evitar consequências negativas e inesperadas da decisão.

É importante lembrar, porém, da origem dessa tese. O caso analisado foi uma disputa entre a família do ex-deputado federal Ricardo Zarattini e o jornal Diário de Pernambuco, que por repetidas vezes acusou o político de ter participado de um atentado à bomba em 1966. Foi comprovado que Zarattini não teve nenhum envolvimento, mas a versão incorreta continuava sendo divulgada. A decisão contra o jornal, portanto, é correta.

Já a tese fixada a partir dela dá mais margem para debate. Neste artigo, me atenho menos aos aspectos jurídicos – longe de serem minha especialidade – para refletir sobre como a decisão pode se materializar na prática nas redações, e possíveis consequências.

Por um lado, é verdade que a decisão do STF pode ajudar a reduzir o chamado “jornalismo declaratório”, em que matérias são produzidas a partir apenas das chamadas “aspas” de uma personalidade, com pouca reflexão, contextualização e, até verificação do que é falado. A dinâmica das redes sociais e da distribuição algorítmica acaba incentivando essa prática, já que a polêmica das declarações gera muito mais likes e compartilhamentos, por mais nociva que ela seja.

Podemos, portanto, ter um ganho prático de mais responsabilidade e reflexão na imprensa, e até redução dos cada vez mais populares “offs” no jornalismo político. Por outro lado, também é verdade que a tese adotada pode aumentar a autocensura e a judicialização no jornalismo, em especial para veículos menores.

Aqui, cabe destacar o impacto que a decisão do STF poderá ter para veículos comumente chamados de independentes ou alternativos. Temos visto cada vez mais a importância desses veículos e do seu trabalho na esfera do jornalismo investigativo, explorando e desnudando relações de poder, crimes e escândalos que acabam, por vários motivos, ficando à margem da cobertura da imprensa tradicional.

São eles, também, que mais tendem a despertar a ira de políticos, empresários, juízes e qualquer outra pessoa que possa acabar sendo objeto dessas investigações. Se, hoje, a judicialização desses casos já é comum, a decisão do STF pode dar mais um argumento para realizá-la e, portanto, incentivá-la.

Mesmo que esses casos não venham a envolver uma violação da tese adotada pelo STF e acabem sendo rejeitados em instâncias superiores, a mera judicialização tende a ser extremamente negativa para esses veículos. Muitas vezes, eles não possuem nem os recursos necessários para custear essas disputas.

Nesse sentido, não me parece ser incorreto imaginar que os processos contra veículos menores e independentes tendem a crescer, abrindo margem à autocensura, censura e à imposição de barreiras ao livre exercício do jornalismo.

Cabe, ainda, outra reflexão, calcada na realidade das rotinas jornalísticas: como será a dinâmica de aplicação dessa nova regra em entrevistas ao vivo, em que a fala é publicizada de imediato e a verificação só pode ser posterior? E, mais importante: como essa nova exigência vai chegar nos veículos em um contexto de redações com jornalistas cada vez mais sobrecarregados e exaustos?

Em um contexto de aceleração da produção jornalística, em que cada vez mais há um foco em publicar conteúdos o mais rápido possível e pensar no contexto e aprofundamento depois, há cada vez menos tempo para “fazer jornalismo”, inclusive as verificações. É uma realidade dura, incorreta e negativa para o jornalismo, mas que precisa ser confrontada, até para que possa mudar.

Nesse contexto, ao invés de aumentar o rigor por trás do trabalho jornalístico, a decisão do STF pode ter o efeito oposto: levar à desistência de realizá-lo para evitar riscos de judicialização ou então o trabalho de realizar verificações complexas e “seguir o rastro” de dados, evidências e falas.

O tempo urge, a carga de trabalho já é alta, o salário é baixo, as condições de trabalho são ruins. Como esperar que, nesse contexto, o jornalismo de qualidade esperado pelo STF e pela sociedade possa ser empregado? Esse debate vai além da própria decisão da Corte, mas não pode mais ser ignorado.

Destaco, por fim, que, entre o que deveria ser feito em um veículo jornalístico e o que é efetivamente feito há um abismo, o abismo da realidade e suas condições. O risco, agora, é que a realidade também crie outro abismo: entre as mudanças que a decisão do STF deveria trazer e as mudanças efetivas que ela vai criar.

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João Pedro Malar é bacharel em jornalismo pela ECA-USP. Atualmente, é mestrando junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação na mesma instituição. É pesquisador do Com+ – Grupo de Pesquisa em Comunicação, Jornalismo e Mídias Digitais.