O New York Times de hoje publica o artigo “Quando você tem de atirar primeiro”, do israelense de origem americana Haim Watzman, autor de um livro sobre a sua experiência no exército de Israel.
O tema, naturalmente, é a execução do brasileiro Jean Charles de Menezes, da forma como os israelenses eliminam suspeitos de estarem prestes a cometer um ato terrorista, atirando na sua cabeça. No caso de Jean Charles, como se sabe, foram 7 disparos – e mais um, no ombro.
A conclusão de Watzman: “O policial que matou Mr. Menezes fez uma coisa horrível. Mas ele fez também a coisa certa. Uma das tragédias desta era de homens-bomba suicidas – a rigor, de toda guerra – é que a coisa certa a fazer às vezes é uma coisa horrível. Lembrem-se: existe uma distinção essencial entre nós e os homens-bomba suicidas. Os homens-bomba suicidas perpetram horrores gratuitos. Nós fazemos coisas terríveis só quando é necessário prevenir que algo pior aconteça.”
Bonito. Mas errado.
Primeiro, “nós” – se o pronome se aplica às forças israelenses nos territórios palestinos ocupados – não fazemos coisas terríveis “só” para impedir coisas ainda mais terríveis. Fazemos por via das dúvidas. Ou porque fomos adestrados a ser, na expressão americana, trigger-happy, felizes por usar o gatilho.
Segundo, quem diz que era “necessário” exterminar Jean Charles?
Para o israelense, “quem” é o que ele considera realidades inquestionáveis, depois de duas séries de ataques terroristas em Londres, em duas semanas:
1) A polícia viu um homem vestindo um casaco comprido inadequado para um dia de verão saltando sobre uma catraca da estação de metrô e correndo em direção a um superlotado vagão de metrô.
2) O fato de ele usar um casaco longo num dia de verão era “um indício para o qual a polícia foi orientada a estar atenta” porque, nos anos recentes, “um certo número de homens-bomba suicidas usavam casacos assim para esconder o cinturão de explosivos afivelado em volta de suas cinturas”.
3) A polícia agiu sob ordens expressas para atirar na cabeça de alguém de quem podia pensar que estava para cometer um atentado suicida.
4) “Cargas explosivas são geralmente montadas para detornar ao menor movimento do dedo do suicida. O terrorista pode ter sido incapacitado, estirado no chão, cercado por homens pesadamente armados e ainda assim fazer explodir tudo à sua volta.”
Sentença de morte a distância
Bullshit. Se a cabeça, o tronco e os membros do possível terrorista estiverem imobilizados, como parece ter sido o caso do brasileiro, ele só poderia provocar a explosão usando a força do pensamento negativo.
Mais: quem disse que ele usava um “casaco comprido”? Quem disse que ele correu da polícia que o vinha seguindo (por quê?) e lhe teria dado ordem de parar? Quem disse que ele podia saber com absoluta certeza de que os que os seguiam se identificaram policiais? Quem disse que ele correu antes de entrar na estação? Quem disse ele pulou uma catraca?
Dos seus últimos momentos, só se sabe o que contou o passageiro que testemunhou a matança: que ele estava de olhos arregalados, petrificado como um coelho acossado.
Se um dos três policiais que nele atiraram tivesse lhe dado um murro na cabeça, ou uma cotovelada no pomo-de-adão, ou ainda uma descarga do revólver elétrico que se supõe que carragavam, os valorosos homens da lei poderiam perceber em um minuto que aquela figura desacordada era inofensiva.
Enquanto a investigação independente ordenada pelo governo britânico não provar o contrário — esperando-se que as suas conclusões sejam menos parciais do que as da investigação sobre o suicídio do especialista inglês em armas de destruição em massa, no ano passado — o bravo soldado Watzman não pode apresentar hipóteses, divulgadas pela polícia, é bom que se diga, como fatos comprovados.
Talvez pudesse fazê-lo em Hebron ou Jenin. Não numa das capitais da civilização ocidental. [Em 2000, no começo da brutal repressão ao que viria a ser a Segunda Intifada, o ainda primeiro-ministro Ehud Barak disse à repórter Christiane Anampour, da CNN: “Aqui não é Londres.”]
Enquanto não terminar a investigação, vale o que diz Gareth Peirce, a advogada da família Menezes: “Há mil questões pendentes”.
Para ficar na metáfora, o certo é 999. Porque uma questão foi dirimida pela própria polícia ao se referir ao assassínio como uma “execução legal”, um ato deliberado, em resumo.
Conforme o Daily Mail de ontem, citado pelo correspondente do Estado, João Caminoto, a sua sentença de morte foi decretada a distância, pelo rádio com que os policiais perguntavam aos superiores o que fazer.
Quem deu o veredicto foi a comandante Cressida Dick, da Scotland Yard, aparentemente uma protegée do poderoso chefão da Polícia Metropolitana de Londres, Sir Ian Blair.
Colegas de Cressida disseram ao Mail que ela está “devastada”, “em pedaços”. Poor thing.
Por que não a colocam em férias, como fizeram – espantosamente – com 2 dos 3 matadores de Jean Charles. Em qualquer país civilizado, com perdão pela ironia, eles permaneceriam detidos, em celas individuais, pelo menos até serem ouvidos no inquérito.
Por falar em país civilizado, a revista Economist que estará amanhã nas bancas britânicas traz uma pesquisa segundo a qual 6 em cada 10 londrinos aprovam a conduta da polícia no caso do brasileiro, 2 reprovam e o resto não sabe.
Termino com o fecho do editorial a respeito, publicado hoje pelo Estado, cujos editoriais sobre violência, criminalidade e legislação penal às vezes grafam direitos humanos entre aspas.
“As autoridades britânicas precisam rever a política de atirar para matar”, sustenta o jornal. “Afinal, o terrorismo só será derrotado se os governos democráticos souberem conciliar os meios eficazes para lutar contra ele com os valores que são a base da vida civilizada.”