Parece um contrassenso, mas é justamente isto que a organização não governamental City Bureau, de Chicago, nos Estados Unidos, está testando através de um programa chamado Documenters, destinado a treinar pessoas comuns na produção de informes sobre ações de órgãos, empresas, sindicatos e instituições, privadas ou públicas no âmbito local.
O projeto procura intensificar a cobertura de eventos locais de interesse público, mas pode ter desdobramentos de longo prazo que podem levar à transformação do jornalista de garimpeiro de fatos e artesão da notícia num profissional de curadoria e tutoria informativas. Segundo o pesquisador norte-americano Victor Pickard, isto pode acelerar a implantação de uma nova estrutura para a prática do jornalismo, substituindo a motivação comercial pela do interesse público.
O Documenters procura recompor a relação entre jornalistas profissionais e o público distorcida ao longo dos anos pelo processo de distanciamento entre as redações e as audiências, o que acabou provocando índices recordes de perda de confiança no papel da imprensa e do jornalismo. O City Bureau parte da ideia de que as pessoas comuns serão as principais produtoras e selecionadoras de notícias enquanto aos jornalistas caberá a complexa tarefa de checar veracidade, contextualizar e sugerir padrões editoriais.
O objetivo do Documenters é estimular o envolvimento de moradores na discussão dos problemas municipais e na produção de fluxos informativos voltados, prioritariamente, para a população hispânica, negra e imigrantes europeus e asiáticos. O projeto foi lançado em 2018 em Chicago e desde então foi ampliado para sete outras cidades norte-americanas através de parcerias com projetos jornalísticos locais. Os participantes dedicam tempo parcial à produção de informes, têm profissões variadas e recebem treinamento e pagamento por trabalho executado.
A experiência do City Bureau está sendo acompanhada de perto por vários pesquisadores internacionais na medida em que ela tende a abrir espaço para a institucionalização dos chamados Community Information Centers (CIC ou Centros Comunitários de Informação -CCI), um tipo de organização municipal já existente em algumas cidades norte-americanas e que procura coordenar estratégias locais de comunicação, abrangendo desde jornais hiperlocais até clubes de leitura.
A nova institucionalização do jornalismo
Os primeiros CIC surgiram em 2020 nos Estados Unidos, sob o nome de Community Information Cooperatives, para enfrentar o caos informativo nas comunidades pobres durante a pandemia de Covid 19 de estados na costa leste norte-americana. A ideia depois deu origem à criação dos Distritos Informativos, uma instância que passou a incluir também prefeituras. Uma versão em português do projeto chegou a ser produzida pela jornalista brasileira Nina Weingrill, do coletivo Énois. Depois da pandemia, apenas os Distritos Informativos mais atuantes mantiveram-se em evidência, como o Jersey Bee.
O conjunto destas experiências parece indicar o crescimento de uma tendência rumo a uma nova institucionalização do jornalismo. Os principais pesquisadores do jornalismo na era digital como os norte-americanos Victor Pickard, Damian Radcliff e Penelope Abernathy acreditam que caminhamos para um sistema predominantemente público onde os profissionais terão como principal função assessorar a comunidade na produção de fluxos noticiosos locais.
Isto, eventualmente, significa uma desinstitucionalização do jornalismo, ou seja, substituição das atuais estruturas da atividade profissional por um novo tipo de organização cuja principal característica seria a vinculação aos interesses comunitários em vez da preocupação comercial, presente na maioria dos órgãos da imprensa tradicional. Trata-se de uma mudança cujo perfil ainda é bastante vago, onde a principal certeza é a de que ele não será mais baseado em grandes empresas jornalísticas, já que estas se tornaram inviáveis devido à perda de valor comercial da notícia.
Outras possibilidades em discussão no meio jornalístico e acadêmico se relacionam ao financiamento de projetos jornalísticos locais e independentes, hoje ameaçados pela síndrome da falta de sustentabilidade. Este problema poderia ser resolvido parcialmente, por meio da um imposto municipal a ser recolhido pelas prefeituras, mas gerido pelos distritos informativos eleitos diretamente pela comunidade. Os recursos seriam então distribuídos aos Centros Informativos Comunitários, também eleitos e integrados por jornalistas profissionais e pessoas treinadas em projetos como o Documenters.
Mas todas estas propostas e estudos têm como base uma mudança de comportamento de leitores, ouvintes, telespectadores e internautas. Eles passam a ser agentes ativos no processo de produção de notícias em vez de meros espectadores e receptores passivos de informações.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.