Em sua coluna no Globo, Merval Pereira chama hoje (27/10) a atenção para um paralelo preocupante: acusações de irregularidades nas prefeituras paulistas de Santo André e de Ribeirão Preto. O prefeito assassinado de Santo André, Celso Daniel, seria o coordenador do programa de governo de Lula em 2002. Seu substituto na tarefa foi o então prefeito de Ribeirão Preto, Antonio Palocci. Celso Daniel, escreve Merval, teria no governo Lula papel de grande destaque, como veio a ter Palocci.
A praga do financiamento irregular das campanhas e da atividade política, de modo geral, está por trás do drama vivido hoje pelo país, ressalvados os componentes que têm a ver com propensão a praticar ilícitos e falta de caráter (isso existe!).
Vale relembrar que o PMDB, com José Sarney, e o PSDB, com Fernando Henrique Cardoso, ocuparam a presidência da República e tiveram acesso a grandes empresas financiadoras da política, como empreiteiras de obras públicas e bancos. Fernando Collor (que era do PMDB antes da campanha eleitoral de 1989), também. Jorrou tanto dinheiro na campanha de Collor que Paulo César Farias resolveu manter a empresa em funcionamento e até expandi-la. O PFL participou desses três governos. Ficará e fora dos comentários abaixo porque tem menos interesse, no caso, uma força que representa, desde a ditadura, interesses de elites econômicas e sociais regionais.
Grandes estados, grandes obras
Nos estados houve muita proximidade entre partidos e empresas. Mesmo antes da redemocratização. O PMDB foi governo em São Paulo, Minas Gerais e mais sete estados após as eleições de 1982. O PFL, que então se chamava PDS, governou 12 estados, entre eles Rio Grande do Sul e Pernambuco. Os mandatos se iniciaram em 1983. No Rio de Janeiro, Leonel Brizola, fundador do PDT, fez um grande programa de construção de Cieps (Centros Integrados de Educação Pública). Prometeu 500, construiu 162 no primeiro mandato, se não me falha a memória. As construtoras comemoraram, porque foi tudo feito a toque de caixa, nos dois últimos anos de mandato, e nessas condições ninguém controla direito os procedimentos (o secretário da Fazenda de Brizola era César Maia).
Em 1986, o PMDB elegeu os governadores de São Paulo, Orestes Quércia, de Minas Gerais, Newton Cardoso, e de todos os demais 21 estados então existentes, salvo Sergipe (conquistado pelo PFL). Quércia e Cardoso, entre outros, sofreram cerradas acusações de desvio de recursos via obras públicas e financiamento da política.
Em 1990, o PMDB ficou com oito estados, entre eles São Paulo (Luiz Antôno Fleury Filho) e Paraná (Roberto Requião). O PFL ganhou sete estados. A sigla PDS sobreviveu em dois. O PDT reelegeu Brizola no Estado do Rio e ganhou também Espírito Santo e Rio Grande do Sul. O então nascente PSDB ganhou no Ceará, com Ciro Gomes. Partidos menores conquistaram os governos de outros estados (o total havia sido alterado pela Constituição de 1988 para 26 estados e o Distrito Federal). Quércia pronunciou, a respeito da eleição de 1990, a frase célebre: quebramos o estado, mas elegemos Fleury.
Só em 1994 o PT conquistou seu primeiros governos estaduais, no Espírito Santo (Vítor Buaiz) e no Distrito Federal (Cristovam Buarque). Em 1998 as conquistas foram no Rio Grande do Sul (Olívio Dutra), em Mato Grosso do Sul (Zeca do PT) e no Acre (Jorge Viana).
Redutos petistas em prefeituras
Mas desde 1985 o partido de Lula começou a conquistar prefeituras importantes (Fortaleza, Maria Luíza Fontenelle) e iniciou uma relação com empresas de dimensão municipal, principalmente de transportes públicos e coleta de lixo. Em alguns casos, de construção civil. Em outros, de assessoria financeira. A primeira acusação grave contra o PT surgiu durante o governo de Luíza Erundina em São Paulo (1989-92), o caso Lubeca. O hoje deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh era vice-prefeito e secretário municipal. Foi acusado de supostamente receber US$ 200 mil da incorporadora Lubeca para, sempre supostamente, alimentar a campanha de Lula contra Collor, em 1989.
Outra importante vitória do PT foi a de Jacó Bittar para prefeito de Campinas. Seu secretário de Finanças foi o economista Paulo de Tarso Venceslau, cujo nome reaparecerá adiante.
Palocci foi eleito em Ribeiro Preto em 1992 e desse primeiro mandato datam supostas irregularidades que vieram à tona em depoimentos de seu primeiro secretário de governo, Rogério Buratti.
Celso Daniel foi eleito prefeito de Santo André pela primeira vez nesse mesmo ano, eleito novamente em 1996 e reeleito em 2000. Outra da safra de 1992 é a hoje deputada federal Ângela Guadagnin, em São José dos Campos.
A denúncia mais grave relacionada a prefeituras governadas pelo PT partiu em 1995 do então ex-secretário de Finanças de Ângela Guadagnin em São José dos Campos, Paulo de Tarso Venceslau. Foi feita diretamente a Lula, então presidente de honra do PT, e a José Dirceu, presidente efetivo. Envolvia um amigo de Lula, Roberto Teixeira, acusado de usar a empresa CPEM (Consultoria para Empresas e Municípios) para obter ganhos ilícitos em prefeituras. A CPEM tem sede em São Bernardo do Campo e Teixeira emprestou a Lula, nessa cidade, um apartamento em que o dirigente petista morou durante oito anos.
A revista Veja já havia publicado o essencial da história de Paulo de Tarso em 1994. Em maio de 1997, cansado de esperar uma resposta que não vinha, o economista deu entrevistas ao Diário do Povo, de Campinas, e ao Jornal da Tarde, de São Paulo. Foi expulso do PT em 1998, embora uma comissão interna de investigação, integrada por Hélio Bicudo, Paulo Singer e José Eduardo Martins Cardozo, tivesse recomendado a punição de Roberto Teixeira, o amigo de Lula. Outros nomes petistas ilustres que aparecem nas reportagens sobre o caso de São José dos Campos são: Aloizio Mercadante, Gilberto Carvalho, Paulo Frateschi e Paulo Okamoto.
O PT não chegou em 2004 às mil prefeituras sonhadas (ficou com 411). Perdeu São Paulo, Porto Alegre, Belém, Campinas, Ribeirão Preto. Ganhou a reeleição em Belo Horizonte. Só governa três estados, dois muito pobres, Piauí e Acre, e um com economia mais expressiva, Mato Grosso do Sul (infelizmente, agora empobrecido pelo surto de aftosa).
O avanço da democratização e a vigilância desencadeada pela crise do “mensalão” tornam extremamente temerárias manobras para obter recursos de campanha usando os velhos esquemas. De duas, uma: ou em 2006 se faz cumprir a legislação que rege o financiamento da política – isso obrigará as direções partidárias a repensar as campanhas –, ou virão novos escândalos e a credibilidade das instituições sofrerá.
Estatais são o último baluarte
O PT, então, nem sequer pode fazer grandes promessas de manipulação de dinheiros públicos nos estados e em municípios mais ricos. Está numa grande sinuca.
Estatais federais, estaduais e municipais são o último baluarte, real ou potencial, da troca de favores por financiamento de campanha.
Esse pano de fundo precisa ser dissecado e apresentado à população pela imprensa. A crise vai chegando ao fim do ano e já há quatro candidaturas presidenciais lançadas: Lula, PSDB, Garotinho e José Alencar. Logo, logo surgirão listas de pretendentes aos governos estaduais, ao Senado, à Câmara dos Deputados e às Assembléias Legislativas. Na correria do cotidiano as grandes linhas de debate passam para segundo plano, quando não desaparecem do horizonte.