Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

A desigualdade socioeconômica brasileira em números estarrecedores

(Foto: Marcello Casal/Agência Brasil)

No dia 3 de março de 2023, em um texto com o título “O PRINCIPAL PROBLEMA DO BRASIL: A DESIGUALDADE SOCIOECONÔMICA. NÃO É A CORRUPÇÃO”, afirmei:

“… o mais relevante dos problemas do Brasil consiste na apropriação profundamente desigual da riqueza produzida, viabilizada por um conjunto de mecanismos políticos, jurídicos, sociais e econômicos cuidadosamente construídos e mantidos pelas elites dirigentes. Decorre daí uma realidade socioeconômica de extrema injustiça”.

“Portanto, observada, com o devido cuidado, a realidade socioeconômica brasileira é possível concluir, com relativa facilidade, que a desigualdade, inclusive na forma de pobreza, figura como o principal, mais grave e mais vergonhoso, problema do Brasil na atualidade. A corrupção é uma mazela relevante com enorme importância na vida nacional, mas está longe, bem longe, de ser nosso mais significativo problema”.

São inúmeros os dados que confirmam as ponderações anteriores. Destacam-se, entre vários, os seguintes:

  1. a) o índice de Gini mede a desigualdade de renda no intervalo entre 0 a 1. O zero indica a igualdade perfeita. Já o um indica a desigualdade completa. Segundo o relatório World Inequality Lab de 2021, o índice de Gini do Brasil foi de 0,55. Assim, o país figurou como o segundo país mais desigual do G20, perdendo para a África do Sul;
  2. b) a parcela da renda nacional apropriada pelos 10% mais ricos da população é considerado um importante indicador de desigualdade socioeconômica. Nesse sentido, o relatório do Pnud de 2019 aponta que essa parcela era de 41,9%. No mesmo ano, a parcela da renda apropriada pelos 40% mais pobres era de 20,1%;
  3. c) a desigualdade de patrimônio também é amplamente utilizada para mensurar a desigualdade. Conforme o relatório do Credit Suisse de 2021, os 1% mais ricos da população brasileira concentravam 57,5% do patrimônio total do país;
  4. d) “os super-ricos brasileiros detêm o equivalente a um terço do Produto Interno Bruto, a soma de todas as riquezas produzidas do país em um ano, em contas em paraísos fiscais, livres de tributação. Trata-se da quarta maior quantia do mundo depositada nesta modalidade de conta bancária. (…) O documento The Price of Offshore Revisited, escrito por James Henry, ex-economista-chefe da consultoria McKinsey, e encomendado pela Tax Justice Network, mostra que os super-ricos brasileiros somaram até 2010 cerca de US$ 520 bilhões (ou mais de R$ 1 trilhão) em paraísos fiscais” (fonte: bbc.com).

Esses dados deixam fora de dúvida que a desigualdade socioeconômica no Brasil é um relevantíssimo problema estrutural. É o principal entrave ao desenvolvimento econômico nacional e a característica mais importante da realidade brasileira, com profundos reflexos negativos na qualidade de vida da grande maioria da população.

Recentemente, na discussão sobre a tributação dos fundos exclusivos de “investimentos” no mercado financeiro, vieram a público mais alguns dados estarrecedores demonstrativos da absurda desigualdade socioeconômica observada na sociedade brasileira.

Os aludidos fundos exclusivos são modalidades de aplicações financeiras marcadas pela personalização extrema. Esse modelo de presença no mercado financeiro exige o desembolso de, no mínimo, 10 (dez) milhões de reais. O cotista, pessoa física ou jurídica, é o único responsável por custear a criação e a manutenção do fundo. Em geral, o gestor aloca os recursos do fundo em ações, multimercado ou renda fixa.

Segundo um levantamento realizado pelo TradeMap, 2.568 fundos exclusivos com um único cotista estavam registrados até o dia 18 de julho de 2023. O valor total aplicado era de aproximadamente R$ 756,8 bilhões. Esse montante representava 12,3% do patrimônio total de toda a indústria de fundos e uma média de R$ 294,7 milhões por investidor (fonte: g1.globo.com).

Na ocasião, foram levantadas as posições de aplicações de recursos no Tesouro Direto e na poupança. Em maio de 2023, o Tesouro Direto contava com 2,2 milhões de aplicadores. O montante aportado era de cerca de R$ 116,1 bilhões com uma média de R$ 52,7 mil por participante. Já a poupança, também em maio de 2023, tinha um saldo de recursos de R$ 961,5 bilhões para 240,3 milhões de clientes, entre pessoas físicas e jurídicas (fonte: g1.globo.com).

Os fundos exclusivos tinham um flagrante tratamento tributário favorecido. Pagavam imposto de renda sobre os rendimentos no momento do resgate. Entretanto, escapavam da cobrança semestral, conhecida como “come-cotas”, aplicável a grande maioria dos fundos existentes no mercado financeiro. Essa realidade mudou com a edição da Lei n. 14.754, de 12 de dezembro de 2023.

Vale registrar que essa alteração da legislação tributária é um raro caso de correção de rumos da tributação brasileira. Com efeito, foi operada no plano da legislação infraconstitucional, mostrando que o centro de gravidade da reforma tributária brasileira não é necessariamente o texto constitucional. Ademais, procurou impor uma carga tributária maior e mais adequada para o patrimônio e a renda de maior porte, invertendo a lógica da oneração mais expressiva do consumo.

“A taxação é uma das principais apostas do governo federal para aumentar a arrecadação de impostos, elevando os tributos dos mais ricos do Brasil. No parecer, o relator do projeto, senador Alessandro Vieira (MDB-SE), estima montante de R$ 13 bilhões somente em 2024” (fonte: agenciabrasil.ebc.com.br).

Propositadamente, evitei utilizar os termos “investidor” e “investimento”. As aplicações e especulações no mercado financeiro não podem ser adequadamente denominadas de “investimentos”. Somente um movimento de recursos voltado para aumentar o volume de bens e serviços disponíveis em uma sociedade merece a qualificação de “investimento”. Em regra, utilizando de forma errônea essa nomenclatura minimamente respeitável, testemunhamos monumentais transferências de riquezas sem impacto positivo na economia real. Afinal, é infinitamente mais fácil angariar a simpatia e apoio social para a figura do “investidor”, alguém que está contribuindo para o desenvolvimento econômico. Usar o nome adequado de “especulador” dificulta uma série de iniciativas fundamentais para os processos de concentração de patrimônios e rendas.  

Os dados apresentados demonstram, de forma inequívoca, o tamanho das desigualdades socioeconômicas brasileiras. Existe literalmente uma montanha de patrimônio e renda concentrados em uma fração mínima da população. Paralelamente, dezenas de milhões de brasileiros são privados das condições elementares de sobrevivência digna ou sofrem com enormes deficiências na prestação de serviços públicos e no usufruto de direitos sociais fundamentais.

Nesse perverso contexto, e em função dele, são cuidadosamente fabricadas algumas eficientes cortinas de fumaça, especialmente pela grande imprensa brasileira. A corrupção, uma enorme mazela, é apresentada como o maior problema do Brasil. Evidentemente, não é. A violenta polarização no mundo político, envolvendo temas como patriotismo, religiosidade, preferências pessoais e costumes, praticamente atrai todas as atenções e energias. A triste resultante do quadro pintado é o adiamento ou não enfrentamento dos mais estruturais e relevantes problemas relacionados com a vergonhosa desigualdade socioeconômica brasileira.

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Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre em Direito e procurador da Fazenda Nacional