Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A imprensa toda correu atrás do Extra

Fenômeno raro no jornalismo brasileiro, toda a imprensa correu atrás do prejuízo depois do furo do repórter Fábio Gusmão, do diário Extra, do Rio de Janeiro, que divulgou investigações da polícia carioca mostrando o ‘encanto’ de figuras públicas com traficantes de drogas da Favela da Rocinha, na Zona Sul do Rio. Nos últimos dias, boa parte dos jornais e telejornais do Rio e de São Paulo está dando suítes da reportagem. A repercussão chegou à Itália. O Observatório, que sempre chama a atenção do leitor para o ‘estrondoso silêncio’ com que a mídia costuma cercar furos jornalísticos alheios (ver nesta edição ‘Receita de uma notícia requentada‘), quis entender por que, desta vez, a matéria exclusiva de um jornal popular atraiu tanta atenção. Seria pelo fato de que no centro do escândalo havia ‘celebridades’ – esse substantivo que hoje define jogadores de futebol, pagodeiros, atores e modelos?


Fábio Gusmão acha que não. Para ele, o assunto explodiu porque contém outros ingredientes. Por exemplo, trata-se da maior favela do Rio, conhecida internacionalmente, uma favela que tem rádio e TV comunitárias, a única com status de bairro na cidade. Também mostra uma pessoa famosa recorrendo a um bandido porque já não acredita na autoridade policial – ‘polícia e nada é a mesma coisa’, declarou um personagem ao repórter. ‘Isso é sério, a imprensa precisa debater’, diz Fábio. E, principalmente, argumenta, porque envolve uma inadiável discussão sobre o lado em que se está no problema da violência.


Peixe estranho


‘Não há como pedir paz, desarmamento, fim da violência e se relacionar com traficantes, que vendem drogas, compram armas e matam pessoas’, afirma Fábio. O repórter, de 29 anos, refere-se ao primeiro personagem citado em sua matéria, um goleiro do Rio, hoje na Itália. A voz do jogador foi gravada pela polícia – sempre com autorização judicial, ressalta Fábio várias vezes em seus textos, para deixar claro que não recorre a material ilegal de investigação – em diálogo com o chefe do tráfico da Rocinha. ‘Isso é notícia não só porque o personagem é famoso, mas porque nesse debate se percebe a incoerência do discurso: procurei no arquivo e achei a foto do goleiro numa caminhada pela paz na Zona Sul’, conta Fábio. ‘Não houve crime, mas qual o discurso dele que vale, o da paz ou o que prestigia um traficante?’


O diretor de Redação do Extra, Bruno Thys, que com seus editores aprovou a publicação da matéria sob condições (que não apelasse ao sensacionalismo e não desmontasse a reputação das pessoas, que ouvisse antes todos os citados e respeitasse suas respostas), acha que a mania de ignorar furos de terceiros está diminuindo. ‘Às vezes não se pode pensar pequeno’, diz. ‘Ou corre-se o risco de lesar o direito do leitor de se informar.’ Ele garante que o Extra sempre vai atrás de temas relevantes levantados pela concorrência. No caso presente, delicado porque envolve a imagem de pessoas conhecidas, Thys ressalta que o repórter partiu da transcrição das fitas de um grampo feito pela polícia para então investigar e ouvir os envolvidos.


Bem ao contrário do ‘jornalismo fiteiro’, termo cunhado por Alberto Dines para definir a prática generalizada da imprensa de publicar sem apuração o conteúdo de fitas, muitas delas ilegais [ver remissões abaixo]. Duas décadas atrás – ou menos! –, Fábio seria um peixe estranho nas águas da reportagem policial. Com 10 anos de carreira (antes de se formar trabalhou em outros jornais, como O Povo), desde 1998 no Extra, ele é também repórter do jornal na Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), participa de todos os seminários da entidade, já conquistou três prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo e foi finalista do Esso com a série ‘Farda manchada’ – 30 reportagens sobre corrupção policial, das quais 21 em dias consecutivos, que demandaram um ano de investigação.


‘Eu não tinha provas’


No caso presente, Fábio acompanha desde janeiro de 2004 a história do tráfico da Rocinha – o Extra foi o primeiro jornal a anunciar a ‘guerra’ que lá se travou em abril do ano passado. Nesse acompanhamento, teve contato com diferentes equipes da polícia que monitoram o tráfico, e cultivou-as. ‘A pior coisa é depender de uma só fonte’. Exigiu trabalho e tempo – um ano inteiro – conquistar confiança, comparar informações, cruzar dados. E, assegura, sem concessões: sempre publica matérias sobre corrupção policial, e por isso acha que tem moral profissional para apresentar os bons resultados das investigações policiais. ‘Se a imprensa não respeitar a polícia quando faz trabalho sério, quem vai? Tem que publicar.’


Para a reportagem de domingo (14/8), passou uma noite acordado lendo as 220 páginas do relatório de transcrição das fitas. Depois, procurou todos os envolvidos. ‘Quem não consegui ouvir eu não citei.’ Sua maturidade profissional aparece na seguinte frase: ‘É o tipo de cobertura que tem tudo para dar errado se não se fizer direito’. Por exemplo, deixou de mencionar um personagem que o traficante identifica por uma inicial seguida de um número.


Ao longo desta semana, outros veículos foram atrás e deram nome ao boi, não quiseram nem saber – inclusive um jornal italiano. ‘Eu não tinha provas’, resume. ‘Os editores foram rígidos nisso, tem que ter determinados princípios, ter cuidado na preservação das pessoas.’ Gente famosa que contribui para obras beneficentes na Rocinha, por exemplo, era citada por traficantes nas transcrições: ‘Nada tinham a ver, preservamos porque a área precisa ser assistida, não queremos criar pânico entre possíveis colaboradores.’


Apelo à garra


Fábio conta que começou a participar dos encontros da Abraji desde a criação da entidade, logo depois da morte de Tim Lopes, que desapareceu no dia 2 de junho de 2002, quando apurava uma reportagem numa favela do Rio (foi torturado e executado por um tal Elias Maluco, já condenado e preso, e seu bando, em julgamento no momento). ‘Aprendi muito lá, só tem fera’, diz. Aprendeu a cruzar dados da Justiça, do INPI, da Receita, do INSS – parece coisa óbvia, mas é crucial numa apuração. No Excel, prosaica ferramenta de planilhas da Microsoft, põe todos os dados, traça o objetivo e bota pra rodar. ‘O jornalista que consegue dominar isso sai na frente’, garante. Ele até brinca a respeito dos parcos resultados das CPMIs do Congresso: ‘Em vez de técnicos da Receita eles precisam de uma meia dúzia de jornalistas investigativos’.


O repórter é tão entusiasmado com esse jornalismo responsável que não consegue entender por que a manchete do Extra do domingo anterior (7/8) não atraiu o interesse da concorrência. Ele conta com empolgação, em detalhes, a matéria de seus colegas de redação Marco Antônio Martins e Flavia Werlang, que descobriram que Jair Coelho, o antigo ‘Rei das Quentinhas’ do Rio, cujos tentáculos sobre o sistema de licitações no estado provocaram grande escândalo midiático há poucos anos, tem um poderoso sucessor, com novo esquema e novas técnicas de loteamento das licitações.


A matéria está rendendo suítes até hoje no Extra, mas não despertou a curiosidade de outros jornais. ‘Quando vários repórteres entram numa investigação surgem mais fatos novos, descobrimos mais rápido o que se está querendo esconder’, anima Fábio os rivais. ‘Se os jornais ignoram uma investigação começada pelo concorrente só ganha quem se beneficia do esquema.’


Estrondoso silêncio…