Este artigo de opinião não se propõe a “surfar” na onda de entusiasmo do filme Barbie (2023). Por mais que o longa-metragem estrelado por Margot Robbie tenha arrecadado mais de 1.442 bilhão de dólares e se tornado uma das maiores bilheterias da história, concorrendo aos principais prêmios do cinema, nossa proposta aqui é rememorar uma produção mais modesta. Devemos celebrar os 30 anos da intervenção The Barbie Liberation Organization (“A Organização de Libertação da Barbie”, em tradução livre), uma ação minoritária que mesclou arte e ativismo de forma inteligente e perspicaz, levantando questionamentos pertinentes sobre os estereótipos de gênero.
Foi na época das compras de Natal em 1993. Um dos sucessos de venda nas lojas de brinquedos dos Estados Unidos era a boneca Teen Talk Barbie, edição lançada pela empresa Mattel em julho do ano anterior. Acompanhava a boneca uma caixa de voz programada com uma variedade de quatro frases aleatórias entre 270 possibilidades, incluindo: “Vamos planejar o casamento dos nossos sonhos!”, “Quer fazer compras?”, “Encontre-me no shopping”. Até aí, tudo bem. Quase todas as mercadorias da indústria cultural funcionam como propagandas de si mesmas e retroalimentam o seu próprio universo. Contudo, em meio a todas essas frases estimulando o consumismo, a boneca também falava “Aula de matemática é difícil” (“Math class is tough”), o que despertou a oposição de professores e conselhos educacionais estadunidenses. Os profissionais de ensino a consideraram um desincentivo ao estudo da matemática e das ciências. Afinal, o que a Mattel estava insinuando? Que jovens meninas não tinham a capacidade de aprender matemática? Que se tratava de um assunto “muito difícil” para quem supostamente deveria se preocupar com roupas da moda e compras?
Não demorou muito para que artistas e ativistas entrassem em cena. Foi criada a Barbie Liberation Organization (BLO) como um modo de protestar contra os estereótipos de gênero presentes na cultura de massa, além de questionarem o papel das empresas na formação das nossas crianças. A intervenção consistiu em uma “cirurgia corretiva” que realizou uma troca das caixas de voz das bonecas Barbie e das figuras de ação G.I. Joe, um herói de guerra norte-americano fabricado pela empresa Hasbro.
Com os equipamentos de som trocados, os brinquedos foram novamente embalados nas caixas originais e dispostos nas prateleiras das lojas como se nada tivesse acontecido. Ainda que existam divergências quanto ao número exato, estima-se que cerca de 500 unidades tenham passado por essa intervenção nos estados de Nova Iorque e da Califórnia. Quando as crianças perceberam que o G. I. Joe falava coisas do tipo “Quer fazer compras?” e a Barbie falava coisas do tipo “A vingança é minha!”, o que é no mínimo cômico, elas pensaram que os brinquedos estavam com algum defeito de fábrica. Naquele Natal, meninos e meninas podem até ter ganhado “brinquedos com defeito” do Papai Noel, mas, em compensação, aquela surpresa os estimulava a pensar.
Barbie e G.I. Joe foram, sem dúvida, os brinquedos de gênero mais populares do século XX. Eles ditaram padrões de comportamento, modos de expressão, disposições e expectativas entre meninos e meninas, repartindo as sensibilidades dentro de uma lógica binária e opositiva: a feminilidade e a masculinidade. De um lado, temos uma boneca que representa a versão neoliberal da mulher, destacando-se por sua versatilidade para trabalhar dentro e fora de casa. Ela já não se limita às tarefas domésticas, como lavar louça, cozinhar e cuidar dos filhos, mas também desempenha papéis em escritórios, hospitais, bancos e outros espaços que compõem as relações propriamente salariais entre patrões e empregados. Pode-se imaginar o quanto ela vive exausta devido a sua jornada de trabalho integral. Do outro lado, temos uma figura de ação lançada em plena Guerra Fria que representa um herói de guerra sempre pronto para a violência, remetendo-se diretamente ao espírito patriótico norte-americano com o seu ímpeto doentio pelo domínio de territórios estrangeiros e pela subjugação dos povos de outras nações, incluindo o Brasil.
Curiosamente, a “cirurgia de correção” proposta pela BLO não visava restituir um suposto “gênero original” para que a boneca da moda e o militar americano finalmente assumissem as suas “identidades verdadeiras”. Pelo contrário, a cirurgia só obteve sucesso ao transformá-los em “brinquedos com defeito”. Ao trocar as caixas sonoras, o principal mérito da intervenção subversiva foi provocar um efeito cômico, nos instigando a pensar que, talvez, as repartições binárias do masculino e do feminino não sejam tão “naturais” quanto nos fazem acreditar, sendo, antes, uma construção cultural. O binarismo sofreu uma espécie de “curto-circuito” e o gênero foi revelado como um efeito secundário que molda os corpos. Em outras palavras, ocorreu uma quebra de expectativas em relação aos polos da “masculinidade” e da “feminilidade”, evidenciando o caráter fabricado ou manufaturado do gênero. Longe de configurar um elemento primário que “brota” do interior da corporeidade, ele é, antes, um efeito das “políticas de produção das subjetividades” que formatam os modos de agir, pensar e sentir. Os monopólios empresariais ligados à indústria cultural desempenham um papel significativo na promoção dessas políticas, exercendo um impacto na construção da percepção das identidades de gênero desde a infância.
Esse “desvio subversivo” também nos remete aos modos de expressão das minorias sexuais frequentemente englobadas na categoria LGBTQIAPN+, como os corpos gays, lésbicos, bissexuais, transsexuais, assexuais e outros que escapam do padrão normativo regido pela heterossexualidade compulsória. Aos olhos da cultura heteronormativa, tais corpos são rotulados como “defeituosos”, pois escapam, em maior ou menor medida, das expectativas comportamentais da lógica binária imposta às subjetividades.
Se, três décadas depois, os jovens têm demonstrado uma postura mais questionadora em relação aos estereótipos em torno das identidades de gênero, orientação sexual e práticas sexuais que são amplamente reforçados pela cultura de massa, essa intervenção conseguiu aliar arte e protesto de uma forma inteligente na primeira metade da década de 1990. Os ativistas trouxeram uma forma criativa de “hackear” a Barbie e o G.I. Joe a partir da apropriação, prática comum no mundo das artes desde que Marcel Duchamp expôs um mictório como readymade, intitulando-o Fonte, ou quando Andy Warhol exibiu réplicas das caixas Brillo em museus. Contudo, o fato da intervenção ter se realizado fora dos espaços institucionalizados da arte é uma característica que podemos encontrar nos situacionistas da década de 1960, cuja proposta era uma reinvenção radical da vida cotidiana.
O artivismo BLO se enquadra mais diretamente nos movimentos anti-globalização e anti-consumo que marcaram o final do século XX. Por meio de estratégias improvisadas, adaptadas a cada caso, esses grupos minoritários e clandestionos questionaram desde o “escudo corporativo”, com o qual os monopólios empresariais se revestem de aparente imparcialidade, até o fato de que suas mercadorias, vendidas a preços exorbitantes, são fabricadas em países como a Indonésia mediante a exploração da mão de obra local para reduzir os custos de produção.
Nos anos que sucederam a intervenção, não tivemos brinquedos “com defeito” ou ativismos semelhantes. Isso até agosto de 2023, quando o BLO atualizou o seu website informando ter estabelecido uma parceria com a Mattel para anunciar uma mudança corporativa de cunho ambiental com o objetivo de eliminar o uso do plástico na fabricação de brinquedos até 2030. A notícia destacava o lançamento de uma coleção de bonecas biodegradáveis chamadas MyCeliaBarbie EcoWarrior, apresentadas como uma homenagem às ativistas ambientais Greta Thunberg e Nemonte Nenquimo. A divulgação ganhou destaque em diversos meios de comunicação de renome; porém, a história rapidamente se revelou falsa. Mais uma vez, evidenciou-se uma trama planejada pela BLO.
À medida que o BLO se consolida como uma expressão engajada, torna-se evidente que o movimento transcende as fronteiras do mero protesto e se torna uma força catalisadora para uma discussão mais profunda sobre a ética do consumo, a responsabilidade corporativa e o estado atual do planeta, temáticas que ressoam nas ações de 1993 e 2023. O estímulo ao exercício do pensamento e à problematização, tão presente na arte contemporânea, é, sem dúvida, mais instigante do que os inúmeros reposicionamentos de marca que a Mattel realizou para fortalecer sua boneca no mercado, inclusive com o lançamento do longa-metragem. Deve permanecer a lembrança de um excelente artivismo que ainda consegue nos tirar do lugar-comum, e cujo espírito de contestação continua a se reinventar. Que fique de presente para as futuras gerações!
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Ícaro Gomes Silva é mestrando em Artes pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e possui o título de mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde atuou na linha de pesquisa “Filosofia e Sociologia da Educação” e no eixo temático “Filosofias da Diferença, Tecnocultura e Educação”. Graduado em Filosofia, dedica-se ao estudo de temas relacionados à educação, estética e subjetividade.