Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A falácia dos argumentos

Qual o papel que a televisão e o cinema desempenham na formação do ‘gosto’ cultural do brasileiro(a)? Perguntado de outra forma: quais as chances que uma criança nascida no Brasil – independente de sua origem de classe – tem de desenvolver ‘gosto’, por exemplo, por desenhos animados brasileiros ou por cinema brasileiro?


Para facilitar a reflexão: pense a mesma questão substituindo ‘criança nascida no Brasil’ por ‘criança nascida nos Estados Unidos’ ou por ‘criança nascida na França’ e desenhos animados ou cinema, respectivamente, de produção ‘americana’ ou francesa.


Como se formam os gostos culturais?


Como se formam, se desenvolvem e se consolidam os hábitos culturais, incluindo aqui os hábitos de assistir determinados canais e/ou programas de TV ou de ler determinadas revistas e/ou jornais?


Este é um fascinante campo da complexa sociologia do gosto e, por óbvio, não se pretende aqui responder categoricamente a qualquer dessas questões. Elas, no entanto, são pertinentes e atuais em relação à conhecida e repetida falácia no argumento sobre a ausência da necessidade de qualquer forma de regulação da mídia tendo em vista que essa regulação já é feita cotidianamente pelo leitor/espectador/ouvinte que lê/vê/escuta aquilo que quer – podendo, a qualquer momento, simplesmente não ler/ver/escutar aquilo que não quiser ou não gostar.


Em recente debate sobre ‘controle social’ da mídia, Sidnei Basile, vice-presidente de relações institucionais da Editora Abril e vice-presidente do Comitê de Liberdade de Imprensa da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) para o Brasil, afirmou:


‘Ela [a mídia] precisa ter um controle. É o controle que o ouvinte, o telespectador, o leitor, o internauta fazem toda hora, é o melhor controle que existe. Você compra sua revista na banca, não gostou, está ruim, está mal feito, não compra mais. Esse controle social é perfeito e não precisa de outro’ [ver aqui].


Deslocar a questão da regulação da mídia apenas para o gosto, além de reduzir toda a problemática da comunicação de massa a uma única dimensão – a do ‘consumo’ individual no mercado – ignora a complexa questão da formação social do gosto e do enorme papel que a própria mídia nela desempenha.


Além disso, o argumento pressupõe um mercado de mídia democratizado, onde estariam representadas a pluralidade e a diversidade da sociedade brasileira que, por óbvio, não existe. Ignora ainda o fato elementar de que não se pode gostar ou não gostar daquilo que não se conhece ou cujas chances de se conhecer são extremamente reduzidas.


A historiadora Amara Rocha (UFRJ), mostra no seu Nas ondas da modernização: o rádio e a televisão no Brasil de 1950 a 1970 (Aeroplano/Fapesp, 2007) como a adoção do trusteeship model, entre nós, respondia a pressões de um programa do governo Roosevelt (1882-1945) cujo objetivo era ‘estabelecer as bases para as relações econômicas e culturais com a América Latina, priorizando o papel que a proximidade com o american way of life poderia significar para as mudanças consideradas necessárias à sociedade e à cultura dessa região’.


Como ignorar que o Estado brasileiro, ainda na década de 1930, priorizou a exploração dos serviços públicos de radiodifusão por empresas privadas e, a partir daí, se instalou na sociedade brasileira um modelo de exploração da mídia que trouxe com ele uma determinada visão de mundo que inclui o gosto e os hábitos culturais?


E a noção de serviço público?


Por outro lado, é preciso insistir que, se é verdade que a mídia impressa é uma iniciativa privada que está excluída de qualquer forma de licença e/ou regulação, e pode, por opção, ignorar suas responsabilidades sociais, o mesmo não se aplica ao serviço público de radiodifusão. Concessionários de rádio e televisão são prestadores de um serviço público que se obrigam a um contrato, por tempo determinado e sob prioridades e condições definidas em lei.


Nunca é demais lembrar a célebre frase do juiz Byron White em sentença da Suprema Corte dos Estados Unidos: ‘É o direito dos telespectadores e ouvintes, não o direito dos radiodifusores, que é soberano’.


O ‘controle’ do cidadão


De qualquer maneira, o vice-presidente da SIP não deixa de ter sua dose de razão. A acentuada tendência de queda nas audiências e na leitura dos veículos da grande mídia tradicional, revelada nos últimos anos, não deixa dúvidas de ‘que o ouvinte, o telespectador, o leitor, o internauta’ estão, de fato, exercendo o seu ‘controle’. A grande mídia vai aos poucos tendo que conviver com uma nova mídia, alternativa e interativa, e, em alguns casos, construída pelo sistema público.


Novos tempos. Nova mídia. Novos atores. Novos poderes. E muitos ainda acreditam nas falácias de seus próprios argumentos.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009)