Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Eles brigam, o leitor apanha

Não é só nas guerras com armas de fogo que a primeira vítima é a verdade.

Quando a imprensa, de um lado, o governo e o partido do governo, de outro, guerreiam com palavras, tinta e papel, o resultado é o mesmo: sofre a verdade e sobra para o leitor. E não há mocinhos nessa história.

Quatro exemplos do dia suportam essa conclusão.

1. O caso do embaixador

A imprensa de oposição se deliciou com a entrevista à Veja do ex-embaixador brasileiro em Washington, Roberto Abdenour.

Como foi fartamente citado, ele acusou o Itamaraty do ministro Celso Amorim e do polêmico secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães de promover uma política externa cujo espírito seria “vagamente anticapitalista, antiglobalização, antiamericano, totalmente superado”.

Quem só leu a versão da entrevista publicada e comentada nos diários ficou sem saber da missa a metade.

Apenas graças ao colunista Clóvis Rossi, da Folha, que apanha por ter cão e por não ter por causa de sua inflexível independência, o público em geral ficou sabendo hoje que Abdenour também disse:

”O governo Lula tem merecido respeito mundo afora por conciliar uma política pragmática com políticas sociais efetivas e uma política externa séria.” E ainda:

”A relação do Brasil com os Estados Unidos prosperou significativamente nos últimos anos” e “nunca esteve tão bem”.

Quando lhe interessa, a imprensa tem uma memória seletiva para ninguém pôr defeito.

2. O caso da anistia

Até a torcida do Flamengo, como diria o vice-presidente do PT e assessor presidencial Marco Aurélio Garcia, sabe que o deputado cassado José Dirceu quer reaver este ano ainda, se possível, os direitos políticos que teve suspensos quando da perda do mandato – a talvez impropriamente chamada anistia.

E a torcida do Flamengo sabe disso porque o político petista desde o ano passado vem anunciando essa intenção, dia sim, o outro também. Ele pretende colher o milhão e tanto – conforme a fonte seria 1,2 ou 1,5 milhão – de assinaturas para uma iniciativa popular que seria convertida na Câmara em projeto de lei e posta em votação.

O assunto, também hão de saber os flamenguistas, está no que se pode chamar “agenda extra-oficial do PT”. Juntem-se dois dirigentes partidários e a questão se intromete na conversa. A maioria dos petistas estrelados acha que o partido deve trabalhar pela “descassação” de Dirceu. O que discutem é como e quando.

Aí os jornalistas abordam o professor Garcia na saída de uma reunião da legenda, no fim da semana, e lhe perguntam se é a favor da anistia. A pergunta é tonta porque ele poderia responder tudo, menos não. “Claro que sou a favor”, devolveu. “Eu não fui contra a cassação?”

Ocorre – e basta ler os títulos do noticiário político para saber disso – que o presidente Lula não quer que a batalha política da anistia na Câmara atropele a batalha política da aprovação das sete medidas provisórias e cinco projetos de lei do PAC.

Ocorre também que o professor Garcia trabalha no Palácio do Planalto. Como lembrou ontem no Valor o repórter Raymundo Costa, ele e o chefe de gabinete Gilberto Carvalho são literalmente os homens do presidente mais próximos dele: os seus gabinetes ficam no mesmo 3º andar do de Lula. Os dos ministros Luiz Dulci e Dilma Roussef ficam no andar de cima.

Então é claro que o professor Garcia se viu numa saia-justa, precisando explicar que, em relação à anistia, ele falava por si, não pelo chefe.

E como é que foi que ele se desvencilhou? Culpando a imprensa, ora. Acusou-a de ter criado um “factóide”, para tentar “mudar a agenda do país”.

O pessoal do poder é assim mesmo: faz o que não deve e culpa quem não fez.

3. O caso do terceiro mandato

Vocês devem estar lembrados da entrevista do cientista político Leôncio Martins Rodrigues ao Estado, em que, embora cheio de dedos, ele sugeriu que o PAC, se der certo, pode servir de passaporte para Lula ficar até 2010 no Planalto. [Ver neste blog a nota “Estadão lança Lula III”, de 24 de janeiro.]

Nem antes, nem depois da inflada entrevista, apareceu qualquer indício objetivo, por mínimo que fosse, de que estaria nas cartas um projeto que extinguiria o direito à reeleição do presidente, governadores e prefeitos, para que, tudo zerado, Lula pudesse se candidatar de novo.

Aliás, a única manifestação pública do governo a respeito foi um cabal desmentido, com perdão pelo lugar-comum. Perguntada, numa entrevista, se o presidente contemplaria ou poderia vir a contemplar a possibilidade de um terceiro mandato, a atual capitã do time do Planalto, Dilma Roussef, respondeu um definitivo monossílabo: não.

Mas tem na imprensa quem não aceita um não como resposta quando acha, ou quer fazer crer, que a resposta é sim. E hoje, a suposta re-reeleição de Lula reencarna na imprensa paulista, em um artigo e numa passagem de um editorial no Estado, e em outro artigo na Folha.

Vai que amanhã a vida segue, a reeleição continua em vigor e o presidente volta para São Bernardo do Campo no dia 1º de janeiro de 2011. Com que cara ficarão os inventores de Lula III?

Com a cara mais natural do mundo. Dirão: a idéia do terceiro mandato gorou exatamente por causa do nosso alerta, que obrigou o lulismo a desistir do casuísmo.

4. O caso da corrupção

Blogues e jornais vazaram no fim da semana a versão àquela altura mais recente da “Mensagem ao Partido”, cujo inspirador e principal signatário é o ministro Tarso Genro. O documento, naquele estágio, exumava a tese tarsista da refundação do PT, desancava o Campo Majoritário de José Dirceu, que controla a legenda, culpando o “centrão” petista pela “crise de corrupção programática e ética” vivida pelo partido.

O documento era para ser divulgado hoje. Ficou para sexta. O que se divulgou hoje foi que o ministro deu o dito pelo não dito. Ele resolveu expurgar as palavras “corrupção” e “refundação” da versão final da mensagem.

Até aí, tudo bem. Escrever e depois selecionar e “deletar” o escrito que se revelou, afinal, inconveniente são direitos de autor. Direito não é e torto é, porém, justificar o expurgo porque a repercussão das blasfêmias, a cargo evidentemente da mídia, foi “enviesada”.

”Ai dos vencidos”, diziam os romanos. “Ai da verdade”, devemos dizer nós, que pagamos os salários dos políticos e compramos os jornais e revistas que com eles se engalfinham.

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