Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O capítulo esquecido na história dos 40 anos de luta do MST pela reforma agrária

Há um capítulo esquecido na história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Ele merecia ter recebido mais atenção da imprensa nas reportagens publicadas por conta dos 40 anos de existência do MST, cuja fundação foi oficializada no Primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores Sem Terra, realizado entre os dias 21 e 24 de janeiro de 1984 na cidade de Cascavel, no oeste do Paraná. A maneira como comecei a contar a história, criando um clima de suspense, me fez lembrar das broncas que recebia de uma editora com quem trabalhei nos tempos das barulhentas máquinas de escrever nas redações sempre que iniciava um texto dessa forma. Ela dizia: “Wagner, para de encher linguiça e diz logo o que interessa”. Portanto, vamos conversar sobre esse capítulo esquecido da história do MST.

Esse capítulo conta como o MST ajudou a consolidar o agronegócio no Brasil. No início da década de 80, o regime militar que se instalara no país em 1964 estava agonizando. Em 1985, os civis voltaram ao poder e iniciou-se a redemocratização. Mas a saída dos militares de cena não afetou o poder dos grandes proprietários de terra que tinham apoiado o golpe de estado de 1964. Na década de 70 havia começado um novo ciclo na agricultura brasileira. O preço da soja tinha explodido na bolsa de valores de Chicago, Estados Unidos. Até então, a semente da oleaginosa só podia ser plantada em clima subtropical, típico do sul do Brasil. Os plantadores precisavam de novas terras para expandir as lavouras e atender a demanda internacional pela soja. Mas os grandes proprietários não estavam nem aí para as necessidades dos agricultores. Por um motivo básico: terra era poder. 

Na época, havia duas maneiras dos agricultores conseguirem uma gleba: casar-se com a filha de um fazendeiro ou se submeter a pagar preços exorbitantes pelo arrendamento feito sem garantias jurídicas, o que significava que o dono podia mudar as regras na hora que bem entendesse. Durante a redemocratização do país foram feitas leis para facilitar o acesso à terra, que eram dribladas, como a que não permitia a existência de propriedades improdutivas. O drible dos fazendeiros era maquiar a terra lotando-a com rebanhos de gado locado. Ou arar uma pequena área da propriedade para simular que estavam plantando. Foi nesse contexto que surgiu o MST. Assim que os colonos sem-terra começaram a ocupar as fazendas dos grandes proprietários os preços dos arrendamentos caíram violentamente. Agora eram os fazendeiros que corriam atrás dos agricultores para que plantassem em suas terras. Ao mesmo tempo, cientistas brasileiros revolucionaram o plantio de soja criando um grão que podia ser cultivado também em climas tropicais e equatoriais. Isso permitiu que as sementes de soja fossem plantadas em todo o Brasil. Fiz assim um resumo do capítulo esquecido da história do MST, assunto que já havia abordado em março de 2018 no post Como o MST ajudou a consolidar o agronegócio no Brasil.

Ninguém me contou essa história, eu estava lá. Comecei a trabalhar como repórter em 1979 e acompanhei a maioria dos conflitos agrários no Brasil e nos países vizinhos envolvendo agricultores brasileiros. Fiz muitas reportagens. E escrevi vários livros, entre eles: A Saga do João Sem Terra (1988), que conta a história de um líder camponês, Brasiguaios: homens sem pátria (1989), sobre a ocupação das terras paraguaias pelos agricultores brasileiros, e a série Brasil de Bombachas (1995, 2011 e 2019), três publicações que narram a saga dos gaúchos e seus descendentes no desbravamento das fronteiras agrícolas do Brasil. 

Nos dias atuais, muito embora nós jornalistas tenhamos cristalizado na opinião pública a imagem de que o agronegócio é coisa de grandes plantadores de soja, a verdade é outra. O agronegócio brasileiro envolve grandes, médios e pequenos agropecuaristas. As pequenas propriedades produzem grãos, aves e suínos que abastecem as agroindústrias, que por sua vez geram milhares de empregos nas cidades do interior. Entre os pequenos proprietários encontram-se os assentados pelos projetos de reforma agrária do governo federal, que atualmente somam 400 mil famílias espalhadas em 24 estados, onde operam 185 cooperativas (com 1,9 mil associados) e 120 agroindústrias. Há pelo menos 70 mil famílias acampadas na beira de estradas à espera de assentamento. Não foi o MST que inventou a luta pela terra no Brasil. Ele herdou uma história de mobilizações pela reforma agrária que vem de longe e que deixou um rastro de mortes de camponeses – há matérias disponíveis na internet. Lembro-me que, nos anos 80, eu tinha uma agenda (de papel) com o telefone de todos os líderes do movimento. No final do ano, fazia uma revisão para retirar os nomes dos que haviam sido mortos por pistoleiros ou em confrontos com os policiais militares.

No ano passado, na Romaria da Terra, um evento que lembra a trajetória da reforma agrária que acontece todos os anos no Rio Grande do Sul, tive uma longa conversa com João Pedro Stédile, 70 anos, um dos dirigentes históricos do MST. Falamos sobre o futuro das lutas agrárias. O fato é o seguinte. A luta do MST pela reforma agrária teve como consequência a modernização da infraestrutura em vários rincões do Brasil, transformando povoados em cidades. Atualmente, os maiores inimigos dos sem-terra não são mais os pistoleiros de aluguel. É a máquina de fake news montada pela rearticulação da extrema direita com o objetivo de reescrever a história das lutas agrárias no Brasil. Criminalizando o movimento pela reforma agrária. Esse processo teve um enorme avanço durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), entre 2019 e 2022. Bolsonaro terminou o seu mandato. Mas a máquina de fake news segue funcionando a todo vapor. Especialmente nas cidades onde os assentados disputarão cargos nas próximas eleições municipais.

reportagem publicada originalmente em “Histórias Mal Contadas”.

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.