A inteligência artificial é o assunto do momento. Não que a área seja nova ou não tenha gerado mudanças relevantes na sociedade anteriormente, mas nunca se falou tanto de IA quanto antes, graças à chegada e disseminação das IAs generativas, como o ChatGPT. Ao mesmo tempo, esse cenário deu origem a um medo: perder o emprego para uma inteligência artificial. Mas isso é possível? E no jornalismo?
Em primeiro lugar, é importante considerar que, ao longo da história, profissões foram extintas e tarefas feitas por humanos passaram a ser feitas por máquinas. É o famoso processo de automação. Qual seria, portanto, a novidade? Para a futurista e estudiosa de novas tecnologias Martha Gabriel, a novidade é que as IAs tornaram possível agora automatizar a produção de alguns “produtos mentais, cognitivos”.
Isso não significa, é claro, que as ferramentas de inteligência artificial se igualaram aos humanos. É importante lembrar sempre que, sem o comando do humano, a criação de cenário, a ordem enviada, a ferramenta de IA generativa não faz nada. A origem também é humana e os conteúdos usados para treiná-las são, quase inteiramente, produzidos por humanos.
Mas também é verdade que algumas tarefas podem, agora, ser feitas por essas ferramentas com resultados satisfatórios para o mercado, justificando portanto demissões de profissionais e a delegação de atividades para essas ferramentas.
No caso do jornalismo, estudos como o conduzido pelo professor Charlie Beckett e sua equipe apontam que as IAs generativas já são usadas para tarefas como sumarização de conteúdo, produção de títulos, sugestões de pautas, aplicação de SEO, produção de posts para redes sociais e análise de dados.
O jornalismo não é o único segmento do mercado que tem adotado IA – inclusive, desde muito antes do surgimento do ChatGPT e suas “irmãs” de inteligência artificial generativa -, mas é notável a profusão de preocupação sobre os efeitos da IA generativa no trabalho dos jornalistas. Por quê?
Em primeiro lugar, é quase consenso, tanto na academia quanto no mercado, que a área está em crise. Na verdade, crises. As ameaças são econômicas, reputacionais, políticas. Os temidos “passaralhos” [1] ainda são frequentes e os profissionais se deparam com uma carreira marcada por baixos salários (em especial considerando o grau de formação exigida), falta de oportunidades para “subir na hierarquia”, poucas vagas no mercado, sobrecarga de trabalho e efeitos na saúde mental. É um cenário bem pontuado na pesquisa Perfil do Jornalista Brasileiro.
Não à toa, muitos jornalistas abandonaram a profissão e migraram para áreas correlatas no mundo da comunicação. As dores não existem apenas no nível do trabalhador. As empresas quase nunca são lucrativas por si só, estão com dificuldade para encontrar fontes de receita seguras, constantes e sólidas, estão cada vez mais dependentes das big techs e suas plataformas digitais e observam um mercado encolhendo, sem perspectiva de melhora. E não é uma coincidência que todo esse processo ocorra em paralelo com o avanço da internet e do ambiente digital. É importante destacar, porém, que o jornalismo não era um mar de rosas antes. Além disso, é natural que mudanças tão profundas quanto o surgimento da internet tenham um impacto igualmente profundo na sociedade inteira, e o jornalismo não passou incólume a isso. Ou seja, a internet trouxe mudanças, algumas vantajosas, outras não.
Como em outras ondas de avanço tecnológico, o surgimento de novas tecnologias abriu margem para automatizar processos e reduzir a força de trabalho para aumentar a eficiência e o lucro. No jornalismo, as novas tecnologias permitiram extinguir profissões como a do copydesk, revisor, retoquista e até do diagramador. Ao mesmo tempo, toda uma nova dinâmica de cobertura e produção de notícias passou a ser possível. É um processo já bem documentado por pesquisadores, em especial no livro A Mudança Anunciada – O Cotidiano dos Jornalistas com o Computador na Redação, da professora Maria José Baldessar.
Elas não foram substituídas pelas máquinas em si, mas as tarefas exercidas por esses profissionais foram repassadas para outros profissionais da redação – como o editor, o repórter, o redator -, já que agora podiam ser exercidas por eles mesmo sem o mesmo grau de especialização, pela facilidade trazida pelas novas tecnologias.
Os cortes não visaram necessariamente à expansão dos lucros. Na prática, foram uma tentativa de reduzir os prejuízos. Duramente impactados pelas mudanças na lógica de consumo de informação que a internet trouxe, os jornais viram seus modelos de negócios colapsarem. Com menos dinheiro e com as possibilidades trazidas pela tecnologia, os cortes e a sobrecarga dos outros funcionários foram a opção escolhida.
O histórico, portanto, indica que o avanço da tecnologia coincide com a deterioração da profissão e carreira de jornalistas. A culpa não está na tecnologia, mas na forma como é usada e nos efeitos resultantes. Mas a associação é compreensível.
E também é compreensível, portanto, o medo que novas tecnologias geram entre os profissionais, como vemos agora com a IA generativa. Já há, inclusive, casos de demissões de jornalistas coincidindo com anúncios de jornais sobre adoção de IA, como no Gizmodo e no alemão Bild, que demitiu mais de 200 profissionais no ano passado.
Mas será que os jornalistas vão mesmo perder seus empregos para a inteligência artificial? Hoje, pelo que tem sido apontado por especialistas, pelo mercado e pelos próprios criadores dessas ferramentas, acredito que temos 3 cenários mais prováveis:
- A adoção de ferramentas de IA generativa se limita a algumas atividades da profissão. Seria o fim dos tradutores, por exemplo, e uma redução da quantidade de editores de vídeo, som e imagem, assim como de fotojornalistas e designer. Os profissionais restantes nessas áreas e os de outras acumulam a “supervisão” das ferramentas, revisando os conteúdos produzidos;
- O avanço é mais generalizado. As ferramentas passam a ser usadas para produzir matérias do tipo Evergreen, focadas em SEO, explicativas e de contexto, traduções, áudios e vídeos. Mesmo assim, as demissões não ocorrem: prefere-se reaproveitar os redatores e repórteres para produzirem conteúdos investigativos, de fôlego, obter furos e cobrir o noticiário em tempo real. É o cenário citado pelas empresas;
- O avanço não apenas é generalizado como leva a um processo de demissões em massa nas redações. Corta-se o número de redatores, repórteres e editores. Os remanescentes têm um aumento da carga de trabalho, absorvendo as tarefas feitas pelos colegas e realizando-as por meio do uso das ferramentas de IA. O enxugamento, portanto, persiste e se intensifica.
Esses cenários possuem, é claro, um certo caráter especulativo. São, também, cenários mais “puros” e é natural que a realidade misture essas perspectivas. A adoção da IA generativa também é nova e pode ter reviravoltas ainda não enxergadas. Mas, ainda nesse esforço, considero que existem 7 fatores que vão determinar a concretização, ou não, dessas possibilidades:
- Se as ferramentas de inteligência artificial generativa se mostrarem muito caras ou ruins em fazer o trabalho dos jornalistas, com erros e baixa qualidade, as empresas poderão julgar que a adoção não compensa para o negócio e evitariam as ferramentas;
- Pode haver uma mobilização sindical significativa da categoria para exigir que a adoção de IA não envolva cortes nas redações, um movimento semelhante ao observado na bem-sucedida greve de atores e roteiristas de Hollywood. Mas o movimento sindical de jornalistas no Brasil não parece ter a coesão, adesão e força suficientes para isso;
- O próprio público pode se colocar de forma contrário ao uso dessas ferramentas, seja pela baixa qualidade do conteúdo produzido ou pela associação dessa adoção com demissões de jornalistas, refletindo um medo mais amplo na sociedade de perda de empregos para a inteligência artificial;
- Há a criação de regulações no país sobre automação e demissões, limitando seu avanço;
- As empresas jornalísticas serão incapazes de criar seus próprios modelos de linguagem – essenciais para criar ferramentas de IA generativa – e por isso evitarão usar as ferramentas de outras empresas, em especial das plataformas, para não aumentarem a dependência que já existe hoje e as vulnerabilidades que ela traz;
- O peso de questões morais e éticas envolvendo a adoção de IA, demissões de jornalistas e uma aparente substituição do humano pelo não-humano podem retardar o processo;
- O uso de IA generativa por veículos menores permitirá aumentar a eficiência e atrair público, resultando em uma expansão e contratação de mais funcionários, compensando perdas nos grandes veículos.
Não há como saber, ainda, se esses eventos ocorrerão. No momento, a nível individual, o que os jornalistas podem fazer é aprender a usar as ferramentas de IA e entender o quão ameaçado o seu emprego está. Especialistas já apontam que cargos de planejamento, gestão e análise deverão ser beneficiados, e não ameaçados, pelo avanço da IA. Há, portanto, uma tendência para seguir. São cargos, porém, oferecidos em quantidade bem menor nas redações. Mas é importante também que os jornalistas entendam que é preciso haver uma mobilização de classe e, talvez mais importante ainda, uma mobilização e pressão junto ao Estado e a legisladores. Se a história recente do jornalismo é marcada por demissões, sobrecargas e acúmulo de trabalho, o pessimismo diante do que está por vir é compreensível, mas a desmobilização e medo geradas por ele pode ser fatal.
Notas
[1] Jargão para as demissões em massa nos meios de comunicação. Remete a pássaros, revoadas de algo que destrói tudo por onde passa.
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João Pedro Malar é bacharel em jornalismo pela ECA-USP. Atualmente, é mestrando junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação na mesma instituição. É pesquisador do Com+ – Grupo de Pesquisa em Comunicação, Jornalismo e Mídias Digitais.