Nunca antes neste país um presidente do Senado será julgado em plenário por quebra de decoro, conforme parecer dos relatores do Conselho de Ética, aprovado por 11 a 4.
O alagoano Renan Calheiros não recorreu ao estratagema de dois dos seus antecessores, Jader Barbalho e Antonio Carlos Magalhães, que renunciaram aos mandatos antes da abertura de processos contra eles no mesmo colegiado.
A Renan foi proposta a saída informal de se afastar da presidência, continuando senador. Com o que seria arquivada a até então única ação de que era alvo no Conselho. Diante da sua recusa, dois novos processos foram instaurados, a partir de denúncias da imprensa. O PSOL quer emplacar mais um – o quarto, portanto -, também com base em reportagens comprometedoras para o enrolado político.
Leu-se nos últimos dias que outra porta, parecida com aquela outra, poderia ser aberta: Renan se comprometeria – não com todas as letras, naturalmente, apenas com as suficientes – a renunciar à presidência depois da votação em plenário, da qual, por isso mesmo, sairia absolvido em confiança.
Desde a goleada sofrida por ele no Conselho, com a contribuição de todos os três membros petistas do time, ao especular sobre o desfecho da finalíssima de quarta-feira próxima – a portas fechadas, no que depender dos renanzistas -, a mídia se concentrou em antecipar como votarão os 12 senadores da bancada do PT.
Isso porque, pelas contas de chegar a que se entregaram os repórteres, geralmente com as calculadoras emprestadas dos políticos, o partido da estrela foi promovido a ‘fiel da balança’ da decisão.
O que levou a imprensa a tentar antecipar os votos petistas – pelos chutes mais recentes, se todos comparecerem, o resultado será 6 a 6 – e a prescrutar a posição do governo petista.
Ontem, baseada em informações de cocheira do repórter Kennedy Alencar, a Folha deu em manchete que ‘Planalto trabalha para salvar Renan’. Os trabalhadores seriam o ministro de Relações Institucionais, Walfrido Mares Guia; o líder do governo no Senado, o pemedebista Romero Jucá [que poderá fazer companhia a Renan se chegar a ser aberto o citado processo pedido pelo PSOL]; e a líder petista na Casa, Ideli Salvati.
Hoje, embora não em manchete, a mesma Folha publicou que ‘Ministros de Lula negam ação pró-Renan’. Os ministros são o próprio Mares Guia e o da Justiça, Tarso Genro. Este último diz que ‘o governo não está tratando desse assunto’. Claro que está, claro que não pode dizer que está.
Kennedy Alencar perguntou maldosamente a Tarso se as autoridades no palanque do Sete de Setembro sentiram falta de Renan. [Nunca antes neste país um presidente do Senado, que é também o presidente do Congresso Nacional, se ausentou do desfile do Dia da Pátria.] O repórter anotou a seguinte resposta: ‘Por que sentir falta? Ele não veio porque não quis.’
A pergunta era maldosa porque é sabido que Tarso e Renan não se bicam. Pelo menos, o texto não omitiu o fato. ‘Quando era articulador político, Tarso e Renan não tinham bom relacionamento’, esclarece.
O fundamento da posição atribuída ao Planalto é a sucessão de Renan. Se ele for cassado, emissários do governo teriam alertado senadores governistas, a oposição poderá emplacar o substituto. Não é impossível, mas é improvável.
Destituído Renan, o governo jogaria pesado para que o sucessor fosse outro pemedebista – para deixar claro ao poderoso aliado que o problema era Renan, nunca o PMDB, de cujos votos no Senado Lula precisa como do ar que respira.
Outro motivo, quem sabe mais plausível, para o presumível renanzismo do governo é o que o Estado destaca hoje: ‘Equipe econômica tem que crise no Senado prejudique votação da CPMF’.
De um lado, porque a escolha do sucessor atrasaria a decisão sobre a emenda constitucinal que prorroga o imposto do cheque por mais 10 anos. De outro, e tendo tudo a ver com iso, a cassação, como diz o Estado, ‘pode criar clima de desconfiança entre partidos da base’.
Tudo muito bom, tudo muito bem – mas há uma cratera na cobertura da decisão que se aproxima. Para preenchê-la, não basta tomar o pulso do Planalto. Não basta calcular quantos votarão assim, e quantos, assado.
[A propósito, o Painel da Folha lembra hoje que a bancada do PT não é a única a exibir divisões. Dos 17 senadores ‘democratas’, a turma do ex-PFL, no mínimo quatro e no máximo dez poderão fechar com Renan.]
O grande serviço que a imprensa está devendo é contar como estão sendo construído o resultado da votação secreta que salvará ou arrancará o couro do pecuarista alagoano.
Sobretudo em relação àqueles senadores dados como indecisos, ou não inexoravelmente fechados com uma posição ou outra, seria jornalismo político de primeira apurar até onde possível quem são os seus interlocutores e quais os argumentos que lhe são apresentados para que se decidam a favor ou contra Renan – o seu pessoal, por exemplo, pode sugerir a um contrário que talvez não mude de opinião, uma terceira via – a de não comparecer.
A pauta é riquíssima. Se é verdade, como parece, que o presidente do Senado acorda e dorme falando ao telefone, que será que ouve quem está do outro lado da linha? E se a chamada tropa de choque de Renan é conhecida, quem será que integra a tropa de choque da cassação, se é que existe? E será que invocam o perigo de a imagem da instituição ir pelo ralo de uma vez se o homem sair ileso? Isso poderá pesar na escolha dos petistas em cima do muro, por exemplo?
Em suma, trata-se de informar o leitor como se faz política quando ninguém está olhando.
E esse tipo de jornalismo, aplicado a qualquer acontecimento ou processo que é notícia, é o ás que a imprensa mainstream deveria tirar mais vezes da manga para se mostrar indispensável diante do assédio das novas mídias e apesar da enxurrada de fatos – ou factóides – ostensivos que a indústria de comunicação despeja sobre o público incauto, como se lhe dissesse: é isso que você precisa saber para se considerar bem-informado.
Falso. Marx gostava de dizer que se a aparência e a essência da realidade fossem a mesma coisa, a ciência seria desnecessária. Forçando um pouco a mão, pode-se dizer que o jornalismo também. Porque muitas vezes não basta informar a hora: é preciso explicar como funciona o relógio.
A notícia por trás da notícia, aquela que lhe dá sentido e cujo conhecimento abre os olhos do leitor, ainda é o produto mais precioso que se espera da imprensa de qualidade. Uma situação sem precedentes, como essa em que o presidente do Senado da República está prestes a subir ao patíbulo, é também uma situação para a mídia subir no conceito dos brasileiros.
P.S. Aos leitores
Voltarei a escrever a partir do dia 17.
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