No dia 8 de fevereiro de 2024, uma violenta operação policial no Complexo da Maré em busca de carga de veículos roubados provocou um protesto de moradores na Av. Brasil. Esse protesto terminou com a trágica morte de Jefferson de Araújo Costa, um jovem negro de 22 anos, entregador e ajudante de pedreiro. Morreu após um disparo de fuzil à queima-roupa de um PM que reprimia a manifestação.
Vídeos de celulares, e também da câmera do uniforme do policial, mostram o momento em que o agente se aproxima de Jefferson, dispara, insulta o rapaz, depois entra na viatura e vai embora sem prestar socorro. No mesmo dia, o policial foi autuado por homicídio culposo e omissão de socorro, mas, no dia seguinte, o juiz pediu sua prisão preventiva e analisa o caso como homicídio qualificado.
A grande imprensa repercutiu amplamente o episódio, mas de forma seletiva. O Globo publicou cinco artigos noticiosos, o jornal O Dia publicou sete e a Folha de São Paulo publicou um. Estadão e Valor Econômico não publicaram. Foram 13 artigos no total entre os dias 8 e 11 de fevereiro no site desses jornais. E nenhum deles informa que Jefferson era negro. Por quê? Ele é descrito como “jovem”, “portador de necessidades especiais”, “trabalhador” e “morador da Maré”. Uma das notícias informa até que Jefferson seria pai em breve. Mas por que omitem a informação de que Jefferson era negro?
A ONG Redes da Maré, que produz jornalismo alternativo, diz claramente em uma nota publicada sobre o caso que Jefferson era negro. Os familiares de Jefferson presentes no protesto são negros. Os vídeos da morte de Jefferson mostram que ele era negro. A maioria dos 140 mil moradores do Complexo da Maré são negros. Mas por que a grande imprensa decide que a cor da pele de Jefferson não é relevante para ser mencionada nas notícias?
Vejamos mais de perto. Um jovem negro é morto pela polícia, com um tiro de fuzil, à queima-roupa, sem chance de se defender, sem socorro. Desse contexto, a única informação que foi invisibilizada de forma unânime foi a cor da pele da vítima. Omitir que o tiro de fuzil à queima roupa foi contra um homem negro, nesse caso, é escolher recusar toda a discussão que explica por que esse tipo de “equívoco de abordagem”, como classificou o Secretário da PM, só acontece contra um negro na periferia.
Ao omitir que se trata de mais um jovem negro assassinado pela polícia, a grande imprensa se exime também da discussão que necessariamente viria junto com esse dado: abordar a banalização da morte dos negros nas favelas, a política de extermínio do Estado na periferia e o racismo intrínseco às ações da polícia. Lembrando que o atual Governador Cláudio Castro é responsável por 3 das 5 maiores chacinas do estado do RJ. E a cada 4 horas uma pessoa negra é morta pela polícia no Brasil, segundo a Rede de Observatórios da Segurança.
Num país historicamente marcado pelo assassinato e encarceramento em massa de pessoas negras, essa omissão é mais uma prova do pacto da grande imprensa com as forças policiais. E isso é gravíssimo sob diversos aspectos. O alinhamento dos jornais com as instituições do Estado compromete a independência dos veículos de comunicação, que deveriam ter como compromissos a defesa da igualdade étnico-racial, a defesa contra todas as formas de discriminação e a defesa das liberdades democráticas.
A operação policial que provocou o protesto na Av. Brasil se espalhou por seis favelas no Complexo da Maré, com tiroteios e pânico durante três horas. Todos os veículos roubados foram recuperados. A “missão” foi cumprida. Mas a que preço? Como menciona a nota da Redes da Maré, além da morte de Jefferson, uma série de direitos fundamentais foram violados, como o fechamento das Clínicas da Família, escolas que não funcionaram, comércio que não abriram as portas, moradores que não conseguiram ir e vir. Sem contar os incalculáveis danos psicológicos causados pelas intervenções policiais violentas mesmo após a saída da polícia.
Se houvessem liberdades democráticas e de protesto, se os negros não fossem tratados como criminosos a priori, Jefferson estaria vivo agora. Jefferson era negro. E ser negro não é crime.
Artigos utilizados na pesquisa:
REDES DA MARÉ – Nota da Redes da Maré sobre a operação policial de 8 de fevereiro de 2024.
FOLHA DE SÃO PAULO
Homem é baleado à queima-roupa por policial na avenida Brasil, no Rio.
JORNAL O GLOBO
Família de jovem morto por PM na Maré levou mais de quatro horas para liberar o corpo por não ter documento.
‘A gente está vivendo o inferno, o luto e a impunidade ao mesmo tempo’, diz irmã de jovem morto por tiro à queima-roupa na Maré.
Secretário da PM admite ‘abordagem completamente equivocada’ a jovem morto à queima-roupa na Maré, mas defende que agente está apto a trabalhar.
Policial militar mata homem após atirar à queima-roupa durante operação no Complexo da Maré.
Morte à queima-roupa na Maré: ‘Policial chegou jogando spray, atirou e depois correu para a viatura’, diz irmã da vítima.
JORNAL O DIA
Jovem morto à queima-roupa por PM é enterrado no Cemitério de Inhaúma.
Jovem morto com tiro à queima-roupa por PM na Maré será enterrado em Inhaúma.
Justiça converte para preventiva prisão de PM que matou jovem com tiro à queima-roupa na Maré.
No IML, irmã de jovem morto por PM com tiro à queima-roupa desabafa: ‘Quero que esse policial pague’.
Policial que matou jovem na Maré é preso; agente responderá por homicídio culposo.
PM instaura inquérito para apurar morte de jovem baleado à queima-roupa na Maré.
PM mata jovem com tiro à queima-roupa durante operação no Complexo da Maré.
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Glaucia Almeida Reis Blanco é Bacharel em Comunicação-Jornalismo (UFJF), Mestre em Relações Étnico-Raciais (Cefet/RJ) e Especialista em Gestão Estratégica da Comunicação (FACHA). Atua como servidora pública em assessoria de imprensa e tem produção acadêmica com pesquisas sobre jornalismo, redes sociais, análise do discurso e a questão racial no Brasil.
Flávio Almeida Reis é licenciado e mestre em Geografia pela UFF.