Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O homem na máquina

(Imagem de Gerd Altmann por Pixabay)

Desafios à produção do conhecimento impostos pelo fenômeno da Inteligência Artificial põem à prova a relação entre indivíduo e novas tecnologias

Em 1770, o inventor húngaro Wolfgang von Kempelen fez uma apresentação à corte da Imperatriz Maria Teresa. No centro de sua exposição, estava um autômato, ao qual era dado o nome de O Turco. O aparelho consistia em uma figura que, associada a um gabinete, convidava a plateia a disputar partidas de xadrez

O Turco foi recebido com assombro. A máquina era considerada um adversário formidável, e, nas décadas seguintes, realizou turnês pela Europa, pondo à prova a habilidade de figuras como Napoleão Bonaparte e Benjamin Franklin. Mas o dispositivo era, em verdade, um número de ilusionismo – a impressão de máquina inteligente era resultado de um operador humano que, escondido no gabinete do autômato, efetuava as jogadas no tabuleiro por uma série de instrumentos mecânicos.

Passados dois séculos, a invenção de von Kempelen foi resgatada em novos termos. Em 2005, a Amazon, resgatando um dos nomes pelos quais, em inglês, é conhecido o Turco, lançou a plataforma Mechanical Turk. A ferramenta, conhecida também como MTurk, se apresenta como um mercado de crowdsourcing que facilita para indivíduos e empresas terceirizarem seus processos e empregos para uma força de trabalho distribuída que pode realizar essas tarefas virtualmente. 

Na prática, trata-se de uma plataforma para a contratação de força de trabalho distribuída, pulverizando, entre a massa de pessoas cadastradas no MTurk, tarefas como transcrever uma fatura, participar de um estudo, ou rotular fotografias para treinar um programa de inteligência artificial.”

Assim como O Turco apresentado à Imperatriz, o Mechanical Turk da Amazon traz, em seu centro, o engenho (e o fascínio) do trabalho a entrelaçar homem e máquina. No caso do MTurk, para além dos temas que suscita a respeito da precarização do trabalho e dos novos arranjos da gig economy, chama atenção o modo como a plataforma aparece imbricada à infraestrutura do que, no imaginário público, veio a ser entendido como o fenômeno da Inteligência Artificial.

Percebida muitas vezes como autônoma, a Inteligência Artificial, como o Turco, é efeito da ação articulada entre o indivíduo e a máquina. Seu funcionamento, seu aprimoramento contínuo, é resultado de uma intervenção humana que, interagindo com a máquina, alimenta e ensina o processamento de seus dados. Nessa inter-relação, são transformados, pouco a pouco, o entorno humano e o estatuto do conhecimento. De assistentes virtuais a sistemas de reconhecimento de voz e chatbots como o ChatGPT, o fenômeno da Inteligência Artificial permeia, de modo crescente, as dinâmicas da ação e da linguagem humanas, desafiando noções preexistentes de autoria, informação e conhecimento.

As novas manifestações da Inteligência Artificial não apenas processam dados – elas, também, mobilizam a percepção e estabilização da informação, e podem ter o efeito prático de acionar (e, no limite, transformar) a percepção do público. Em meio a essa acelerada modificação no modo como a informação é produzida e disseminada, a própria natureza do saber pode vir a se mostrar instável. 

Para além dos questionamentos sobre as concepções de verdade e autenticidade, ou sobre a tênue linha entre real e artificial num mundo cada vez mais organizado em torno de algoritmos e sistemas automatizados, um questionamento parece se impor: até onde os métodos e práticas de aferição, investigação e trato da informação estabelecidos ao longo do último século dão conta de um universo onde os dados, e a linguagem, parecem submetidos a um contínuo reprocessamento? Como estabilizar em conhecimento um universo informacional que, em contínua reconfiguração, parece se descolar dos territórios que informavam um entendimento consensual do mundo e das suas coisas?

As atuais ferramentas utilizadas no universo da comunicação e da informação são, em boa medida, resposta aos episódios de desorganização na circulação do conhecimento acontecidos ao longo do último século. Da expansão dos jornais impressos à implementação de malhas de radiodifusão, chegando à comunicação via satélite e ao hipertexto, as dinâmicas e práticas a informar a produção de notícias, a escrita de enciclopédias, ou a edição de livros didáticos, por exemplo, são efeito de um contínuo movimento de ajustes e invenções relacionados ao universo da comunicação, seu mercado e seus ofícios. Um movimento que parece ter se apresentado, nos epísódios passados, em mão dupla: ao mesmo tempo em que as transformações informam mudanças necessárias às práticas, as novas práticas moldam e reorganizam o que foi transformado. E talvez seja esse o desafio que se impõe no atual momento: as transformações e instabilidades do universo informacional impostas pelo fenômeno da Inteligência Artificial apontam à necessidade de invenções. A dúvida é como responder a tempo.

Nessa corrida, a tentação é deixar com as máquinas, tão bem treinadas, a missão de chegar às respostas necessárias. E, nisso, nos esquecermos que a Inteligência Artificial é algo ao qual estamos, também, imbricados. Afinal, assim como no Turco, as peças do tabuleiro não vão se mexer sozinhas.

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Tiago C. Soares é mestre em Divulgação Científica e Cultural (Unicamp), e doutor em História Econômica (USP). É pesquisador bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (Mídia Ciência), pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)”