Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Imprensa precisa desideologizar a cobertura do MST

No final de janeiro, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra completou 40 anos de luta pela reforma agrária no Brasil. Para marcar a data, a entidade lançou a “Carta Compromisso do MST com a Luta e o Povo Brasileiro”, um documento que reafirma o seu compromisso “com o povo brasileiro e com a construção de uma nação mais justa e igualitária através da luta e da construção da Reforma Agrária Popular”.

A imprensa hegemônica brasileira, até o momento, praticamente ignorou o aniversário de 40 anos da organização, que para o linguista, filósofo e sociólogo norte-americano Noam Chomsky, “é o movimento popular mais importante e estimulante do mundo”, conforme seu discurso de 2003 no Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre. Sua capacidade de mobilização, organização e a quantidade de filiados (mais de 400 mil famílias) comprovam isso.

O movimento também é conhecido por ser o maior produtor de arroz orgânico da América Latina e por ter aberto diversos estabelecimentos comerciais com produtos sem pesticida em várias cidades do país, além de manter um serviço de vendas on-line.

O MST também recebeu alguns pequenos espaços na mídia alternativa, recentemente, por suas ações sociais em desastres naturais causados pelas mudanças climáticas, como as enchentes no Rio Grande do Sul e as doações para a população da Faixa de Gaza.

O jornal O Estado de S.Paulo fez uma única referência à data em uma notícia da editoria de Política, postada em 27/01/24, com o título “Ministros de Lula enaltecem MST em evento de 40 anos do movimento e saem aplaudidos”. O texto sobre evento com a participação de quatro ministros do governo federal, restringindo-se a relatar declarações de autoridades. Outros veículos impressos, como O Globo e Zero Hora, no entanto, ignoraram totalmente.

Exceção foi a Folha de S.Paulo, que produziu o especial “MST, 40 anos” em seu site. O jornal postou no final de janeiro oito textos lembrando “a trajetória, os conflitos e as mudanças em quatro décadas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra”:

Apenas analisando os títulos acima já é possível verificar uma tendência. A utilização de alguns termos nos títulos denota o enfoque negativo: “irrisória”, “sob cerco”, “critica”, “desilusão”, “ruptura nebulosa”, “mais distante” e “frustrado”.

A palavra “invasões”, por exemplo, é citada em quatro dos oito títulos. O MST repudia esse termo e defende o uso de “ocupações”, expressão cujo significado legal se enquadra com fidelidade às ações do movimento.

Não se trata aqui de mera discussão semântica. O que se deve lembrar é que há diferenças entre “invadir” e “ocupar”, com suas implicações no mundo do direito. Carol Proner, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e do Grupo Prerrogativas, explica que ocupação não é o mesmo que invasão. A Constituição Federal de 1988 define o conceito de uso social da terra e os critérios para que seja legítimo, que não degrade o meio ambiente, que não se faça por meio de trabalho escravo ou análogo e que seja produtiva.

A ocupação de terras tem sido historicamente a forma pela qual os movimentos camponeses chamam a atenção para este compromisso de direitos fundamentais e da necessidade de que a propriedade venha acompanhada de uma função social. Confundir os dois conceitos propositalmente é uma forma de negar a luta pela terra e os legítimos sujeitos de direito, assim reconhecidos pela Declaração da ONU sobre Direitos dos Camponeses. (Brasil 247, 2023)

A Folha, como vários jornais brasileiros, prefere ignorar a doutrina jurídica para, em clara manifestação ideológica, criminalizar o movimento camponês. Por sinal, nestas quatro décadas, o MST teve sua imagem emoldurada na imprensa como uma organização envolvida em “invasões”, “conflitos”, “destruição” e “mortes”, mesmo que as vítimas sejam em sua imensa maioria do próprio MST.

O texto intitulado “Arroz orgânico do MST tem produção quase irrisória, mas virou marca simbólica”, por sua vez, busca minimizar a importância do movimento após a grande repercussão da entrevista, em agosto de 2022, do então candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva para o Jornal Nacional.

Naquela ocasião, o MST foi parar no Trending Topics, após Lula afirmar que o movimento era “o maior produtor de arroz orgânico do Brasil”. A declaração levou a milhares de manifestações nas redes sociais, algumas elogiando a fala de Lula e outras, ligadas à extrema direita, colocando em dúvida a informação. Com o texto da Folha, fica a comprovação de que a fala do atual presidente não apenas tinha procedência, como estava alicerçada em dados. O MST, por sinal, é o maior produtor de arroz orgânico do Brasil e da América Latina, conforme admite o jornal.

A Folha, porém, ignora que a produção de orgânicos ainda está em desenvolvimento – e não apenas no Brasil. Os números mostram que a produção e o consumo de orgânicos crescem em todos os continentes. Mas trata-se de um mercado que ainda está se construindo, enfrentando burocracias, insumos com preços elevados e a falta de apoio institucional, entre outras questões.

A imprensa hegemônica brasileira, que se diz imparcial, precisa desideologizar sua cobertura do MST. A entidade precisa virar pauta seguindo os princípios de noticiabilidade, que são citados nos diversos manuais de redação. Seriam mais isentos os jornais se olhassem para o movimento camponês da mesma forma que veem as organizações patronais. Mas, para isso, precisam assumir definitivamente a ideia da imparcialidade. E não apenas quando lhes interessa.

Referências

PRONER, Carol.Ocupação não é invasão. Brasil 247, São Paulo, 02 de mai. de 2023. Disponível em: https://www.brasil247.com/blog/ocupacao-nao-e-invasao?amp. Acesso em: 5 fev. 2024.

OLEGÁRIO, Polianna Teixeira; ZIEMANN, Marcos Afonso Lopes. Apontamentos Teóricos Sobre o Processo de Reforma Agrária no Brasil a partir da Observação em Campo no Assentamento Che Guevara. In: ANDRÉ, O. et al. Globalização, Regionalização e as Novas Ruralidades! [s.l: s.n.], 2017. p. 230-265. Disponível em: <https://dspace.unila.edu.br/bitstream/handle/123456789/2733/Livro%20Andre%20%26%20Silvia%20-%20Orgs%20-Agbook.pdf?sequence=1&isAllowed=y&gt;. Acesso em: 9 fev. 2024.

Publicação original do Observatório de Jornalismo Ambiental da UFRGS

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Sérgio Pereira é jornalista, servidor público, mestre em Comunicação pela UFRGS e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (UFRGS/CNPq). E-mail: sergiorobepereira@gmail.com.